segunda-feira, 4 de julho de 2016

A resistência de amor, sangue, dor e luta em três gerações de (fortes) mulheres negras

Séculos de sangue, suor, luta, dor, humilhação e dignidade negada encontram, agora, as vias da reconciliação histórica. Augestando a corporalidade, autoralizando a narrativa de si mesma, seus dilemas e agruras, afetividade e solidão, a mulher negra da força ancestral de suas iabás, elas o próprio domínio do corpo e fala, tem este passado belamente desvelado por "Voz negra em três gerações", série idealizada por Késia Estácio, com direção musical de Edu Krieger, arranjos de Marcelo Caldi e coordenação geral de Fernando Gasparini que ocupou na quinta, sexta e sábado últimos o Centro da Música Carioca. O encontro de três gerações distintas do canto feminino negro, representadas por Marina Iris, Luiza Dionizio e Áurea Martins, vem pontuar a pujança do ressoar retumbante deste grito de raiva na resistência sempre revolucionária à supremacia branca masculinista e lesbofóbica dos palcos vida/mundo afora.

O início com "Embala eu" (Albaleria) já inunda de axé a abertura. Que gargantas encantadas! A palavra entoada por uma garganta negra é encantamento. A sequência com "Reconvexo" (Caetano Veloso) na voz de Marina Iris, aliás, dona de interpretações avassaladoras, é um cega careta do matriarcado da Roma negra diretamente aos corações racimachistas mais céticos da força destas mulheres. "Fuzuê" (Romildo e Toninho) é o ijexá de Dionizio nessa gira. Luiza é uma iabá. Cada movimento é a de um corpo (dono de si) em festa. A "Corrida de jangada" (Têtes Raides e José Carlos Capinam) evocada por Áurea Martins só faz carregar amor no coração. Ela é passado, presente e futuro. É a própria força. "Fadas" (Luiz Melodia) e "Virada" (Marina Iris e Manuela Trindade) são o samba da página virada da mulher vítima da "escolha por gosto" sempre muito guiada de Adão. Ainda bem que, como ressalta Marina, ao fim e ao cabo, "amor é libertação". Luiza persegue semelhante catarse em "Me deixa em paz" (Ayton Amorim e Monsueto) e "Molambo" (Jayme Florence (Meira) e Augusto Mesquita). O clímax de tudo chega com Áurea gritando a resistência de seu canto negro, e a revolução por ele representada, em "Canções e momentos" (Milton Nascimento e Fernando Brant). O punho cerrado de Martins faz o casamento perfeito entre a voz, instrumento de luta, e a canção, no que a arte poeticamente verbaliza de subjetividade. Raiva é potência. É seu soluçar de dor que potencializa a resistência e, sim, torna-a amorosa, porque reconcilia seus iguais à sua identidade, pertencimento, sagrado e dignidade. "Minhas madrugadas" (Paulinho da Viola e Candeia), também vocalizada por Áurea, é outro símbolo da face marcada pelo suor da luta e os olhos vermelhos de que tudo não é ilusão. "Pra matar preconceito" (Manuela Trindade e Raul DiCaprio) é síntese, anti tese geral. Renascimento. É a hipocrisia do machirracismo branco, masculinista, misógino e lesbohomobitransfóbico jogada à luz. Ninguém diz à mulher negra alguma qual é o seu lugar. Zezé, Lecy, Mercedes Batista, Ednanci, Aída, Ciata, Quelé, Mãe Beata e Aracy: a pele preta é bandeira de guerra, punho sempre cerrado, ação política, história que é dança suada no Ilê. São Conceição e Dandara. Todas matam o preconceito diariamente. E choram. E morrem. E sangram. E resistem para viverem de novo. Essa liberdade de sê-lo e enfim vivê-lo é estrelada com Luiza em "Upa neguinho" (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri). A valentia emprestada faz da nega Áurea só "Samba com dengo" (Paulo César Pinheiro) e do amor, sempre ele, a maior liberdade, ao contrário da "Consolação" (Baden Powell e Vinícius de Moraes) nada consoladora apregoada por Dionizio.

A ode à negritude mais que saravada de "Benguelê" (Pixinguinha e Gastão Viana), sob o axé de Nanã, encerra este espetáculo de resistência e respeito à ancestralidade negra feminina, ainda iluminado com a verdade, silêncio, amor e a liberdade em raiz de "Sorriso negro" (Adilson Barbado, Jair Carvalho, Jorge Portela e Mário Lago). Este show-abraço sensivelmente ensurdece por fazer ouvir o cantar de dor e lamento das mulheres e homens negros humilhados, mas sobreviventes da hecatombe desumana de seu povo; de guerra em paz e paz em guerra, estas mãos violentadas, apagadas e marcadas serão afagos, e carícias, e abraços, ilusões de olhos vermelhos víveres de amor, alegria e saudade do que ainda não se viveu, mas ainda se viverá um dia sem mais dor ou sofrimento. As mãos calejadas serão gritadas. A História contará as histórias das irmãs e irmãos excluídos, oprimidos e explorados, suas passagens, resistência e outras coragens. As cruzes deixadas pelo caminho terão, enfim, nomes.

Foto: Cyntia C. Santos


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