terça-feira, 2 de agosto de 2016

Julia Bosco estreia show de "Dance com seu inimigo", seu mais novo disco, e nele escrevive a urgência de assumir (su)a mulheridade: "Não cabe mais a gente se calar. (...) já é questão de sobrevivência"

Prestes a estrear show de seu segundo e mais novo trabalho de estúdio, a cantora e compositora carioca Julia Bosco conversou com a redatora deste blog em uma série de poucas perguntas sobre "Dance com seu inimigo", arte, política, feminismo e, claro, a vida. A Julia de "Tempo" (2012) deu lugar a Julia mulher que desfila orgulhosa sua mulheridade e nela se faz perten(s)er em seu sagrado, corporalidade e resistência. O desafio de vivê-lo na atual conjuntura política de reação conservadora aos avanços dos movimentos sociais de mulheres na quebra das hierarquias de gênero é assumido por Bosco com ironia, bom humor, autocrítica e discurso incisivamente empoderador. A menina antes sufocada pela grandeza de uma voz ainda desconhecida por ela mesma traiu o silêncio e (re)conheceu em si a fonte de seu próprio poder e força. "(...) e isso só foi possível porque outras mulheres, muitas mulheres, resolveram gritar ao mesmo tempo", diz Julia. "Cada tentativa", como bem afirma a poeta negra lésbica Audre Lorde em "A transformação do silêncio em linguagem e ação", "de falar as verdades que ainda persigo, me aproximou de outras mulheres, e juntas examinamos as palavras adequadas para o mundo em que acreditamos, nos sobrepondo a nossas diferenças. E foi a preocupação e o cuidado de todas essas mulheres que me deu forças e me permitiu analisar a essência de minha vida". Isto é sobrevivência. Julia "escrevive" tal experiência e afirma: "Não cabe mais a gente se calar. Hoje isso se tornou um dever civil, uma obrigação moral. Falar contra o machismo, contra a violência, levantar a bandeira do feminismo, isso vai muito além de apenas quebrar a hegemonia masculina, já é questão de sobrevivência".

Confira a seguir a entrevista completa:

Pelo que pude acompanhar sobre você nas redes sociais e, não sei, coincidentemente, por meio delas nos aproximamos, percebo que "Dance com seu inimigo" é o retrato nítido de uma fase sua. Ou, pelo menos, desta passagem. "Dance com seu inimigo" é o retrato disso?

Dance com seu inimigo é um recorte dessa fase, sim. Claro que, como toda mulher, eu sou plural o bastante para ser muitas ao mesmo tempo, mas a parte que me grita hoje é essa que, metaforicamente, deseja dançar até romper com qualquer opressão, que quer se mostrar em movimento constante, como quem arrasa na pista sem medo de ser quem é, sem vergonha de não dançar igual a todo mundo: sentindo-se, enfim, livre de tudo, inclusive de si. A gente cresce e se censura tanto, e se cobra tanto, e se reprime tanto. Temos que nos libertar de nós mesmos. Às vezes, muitas vezes, o inimigo está em nós.

O que é "Dance com seu inimigo"?

Cabe muita coisa aqui dentro desta resposta, porém, acredito que seja, acima de tudo, um grito pessoal de liberdade, um nó desfeito na garganta. E, justamente por ser na garganta, manifestou-se em canto.

Foto: Donatinho


Eu me lembro de que Chiara (Civello) chegou a enviar uma canção para compor este trabalho, "It's wherever you go", em parceria com Mombaça. Imagino que outras pessoas também enviaram outras tantas canções. Você preferiu privilegiar temas nacionais, ou simplesmente as dez selecionadas compõem mais o seu momento, falavam mais a/sobre você? 

Eu flerto com essa canção há muito tempo: é linda em letra e melodia e tem versões em inglês, português e italiano, três belas línguas para se cantar o amor. O que aconteceu foi que, a medida em que o disco foi tomando forma, pela escolha de repertório, eu era capaz de defender todas as outras canções selecionadas ou escritas por mim, menos essa, que ficava um pouco deslocada ali. Então, preferi guardar e aguardar. Continuo achando uma belíssima composição, feita em parceria por duas pessoas sensacionais, só não me vestiu bem naquele momento. Realmente, eu botei uma ideia de argumento na cabeça e fui com ela até o fim.

A Julia de "Tempo" (2012) é muito diferente desta de "Dance com seu inimigo". Em quê estas Julias se diferem? Você acha que a Julia de "Tempo" deu espaço para a Julia de "Dance com seu inimigo" viver a mulheridade ali desfilada? Como?

Aquela Julia era uma mulher sufocada, que não sabia nem a voz que tinha. Eu sofro por ela ainda hoje, e luto para fazer cada vez melhor em nome dela.  Essa vontade de se entender mulher em um contexto maior deu o Norte desse trabalho. Portanto, sim, a mulheridade desfilada nesse disco surge do grito daquela outra, de suas rupturas e reformulações, de seu processo de autoconhecimento, e isso só foi possível porque outras mulheres, muitas mulheres, resolveram gritar ao mesmo tempo.

Eu digo, ou melhor, acredito e milito - 'cê me conhece - que enquanto as cantoras da cena musical, carioca ou da música popular em geral, não assumirem seu lugar de fala, ou seja, dizerem-se mulheres no meio em que se situam, não avançaremos na questão da quebra de hegemonia masculina neste espaço. Aliás, não avançaremos também em termos de autogestão narrativa, embora muito já tenha sido conquistado e ocupado por cantautoras maravilhosas. Como você avalia, hoje, a situação da mulher na MPB? O quanto ainda podemos avançar, sobretudo neste contexto político-cultural-econômico ainda mais hostil a nossa ocupação?

Não cabe mais a gente se calar. Hoje isso se tornou um dever civil, uma obrigação moral. Falar contra o machismo, contra a violência, levantar a bandeira do feminismo, isso vai muito além de apenas quebrar a hegemonia masculina, já é questão de sobrevivência. Acho que o momento é bastante favorável para artistas da "minha geração" e que elas deveriam aproveitar a oportunidade para engrossar o coro. Digo entre aspas, porque, aos 36 anos, sou da mesma geração musical de meninas de 20. E vejo em várias delas esse grito também sendo entoado janela afora, serrando as grades, rompendo as barreiras, mas acho uma pena que isso se não seja tão comum no mainstream, que não é a nossa realidade. Imagina o poder de comunicação de uma artista estourada, e imagina se isso fosse usado em favor de um assunto tão urgente, mas acredito que este seja o início de uma caminhada e que as pessoas estejam se engajando cada vez mais, embora em intensidades diferentes. São muitos paradigmas para quebrarmos e aí entram todos os contextos, desde as estruturas familiares, a educação escolar, até o contexto político-cultural-econômico do mundo como um todo.

Quem é, hoje, Julia Bosco? 

Dobrou a esquina, já não é mais a mesma. Hoje busco aprender, lutar e evoluir. Constantemente em movimento, dançando com os inimigos.

Antes dos comerciais, brincadeira, qual é a mensagem principal de "Dance com seu inimigo" e da Julia Bosco para agora?

Correndo sério risco de parecer autoajuda, mas, arriscando-me com amor e força: aproprie-se de si mesmo, sem pensar duas vezes. Você é mais.


Foto: Donatinho



Agradecimento especial a Julia, por tudo e tanto, uma das vozes que se juntou à minha para romper um silêncio histórico sobre outras de nós e honrar a memória das mulheres que se nos abriram o caminho. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário