A arte, e o fazer artístico, tem de subjetivo recalcado e sentido social. Cantar é a porta de saída, ou reentrada, de medos, modos e (mais de vinte) muros do/a artista. O sangue que jorra dos mil anos de delírios e calmas inventadas no diálogo-combate-colírio-crueza da canção é a pergunta sem resposta, ou de muitas respostas e sentires, desfilada no palco. João Cavalcanti dá vez e voz a estas dúvidas/perguntas em "Garimpo", show que ocupou o Sesc Tijuca na quinta-feira última (22). Acompanhado de Marcelo Caldi no piano e acordeom, Cavalcanti interpretou canções autorais, parcerias e composições de outros autores no intento de responder e abstrair àquelas questões primeiras sobre expor-se ou não ao medo de desnudar-se em cena, encarando tal desafio - ou sina - com serenidade. A seleção vocabular apurada e o léxico primoroso empregados por Cavalcanti em músicas de sua lavra autoral e/ou de seus parceiros oferece soluções poéticas e criativas a cada um dos dilemas levados à boca de tamanha explosão.
"Consumido" (João Cavalcanti e Jorge Drexler), canção em espanhol escrita com o cantautor uruguaio Jorge Drexler, dá conta de tais temores, categorizando não haver artista consumado/a, ou qualquer pessoa sensível, que não tenha passado por este medo de desnudar-se em/por sua arte de corpo e alma. "Pêndulo" (João Cavalcanti e Cláudio Jorge) é a fantasia que envolve o artista na aura da fantasia da própria arte, pendularidade filosofísica, porque se inscreve no corpo, na antimatéria do amor e amar sem limite. "A causa e o pó" (João Cavalcanti e Lenine) é o apogeu da vida artística cego pela dureza de pedra do real - material ou subjetivo -, em meio ao perene e humano (transitório). É-se de estrelas, apesar do atrito lapidar, e lapidável, da dura caminhada de vestir esta mortalha. A sonoridade do piano portentoso de Caldi ambienta este sonho (escre)vivo entre os versos da canção.
"Moleque" (João Cavalcanti) é denúncia. O limão sobe no breu da noite no braço único do guri, e o gosto azedo da fruta revela a pútrida realidade da pobreza social (e histórica) fundada sobre o sangue de quem sempre morreu na contramão atrapalhando o tráfego e a famigerada justiça branca divinamente estupidificada.
"Serpentina" (Marcelo Caldi e Edu Krieger) abre o bloco de canções sobre o amor, suas delícias, bem-aventurar e agruras. Aqui, o quiprocó da vida por vezes vã e vazia de fantasia, imposta não obstante pela realidade, dá é espaço a fantasias e belezas mil na alegria de viver a folia de amar. "Valsa do baque virado" (João Cavalcanti e Mario Adnet) é rei de estandarte no caminho de terra molhada, coroa de cristal e boneca de cera queimada: alerta para a transitoriedade e pequenez de aparentes grandes dilemas frente à prepotência e falta de humildade em abandonar certezas e entregar-se ao desconhecido.
"Domingos" (João Cavalcanti e Zé Renato) é doce homenagem à grandeza de Dominguinhos (1941-2013), matéria reluzente no sol de cada mão, suor e rosto deste país que, do sertão nordestino, iluminou com o dom maior do sanfoneiro a Lua feita repleta de som e o coração deste Brasil. "Ser cidade" (João Cavalcanti e Marcelo Caldi) é o drama urbano da cidade de arranha-céus e arranha-almas que pisa a liberdade de ser à beira mar e repousar no ombro de Deus, sonhada tranquilidade da matriz de solidão.
"Nem parecia" (Marcelo Caldi e Edu Krieger) é o fim da paranoia pelo próprio fim. Galáxias cairão à tua direita, planetas desorbitarão à tua esquerda, mas nós dois, isolados do mundo e à frente do mar, zombaremos da totalidade míope, do ressoar de trombetas e clarins a clarearem a vida e do amanhã que ainda existirá entre promessas vãs e sushis. "Na varanda da Liz" (João Cavalcanti, Tiê e Plínio Profeta) é a luz da lua que brilha na varanda do amor ritualizado pelo tempo que não se cansa de alimentar esta chama. "O nego e eu" (João Cavalcanti) é a certeza do domínio do corpo: ela é todas, e outras, protagonista de si e dos sonhos alheios, porque é inteira. A madrugada é companheira, mas ainda mais companheiro é a parceria do grande amigo, o amor de sua vida. Mais que se assenhorar de si, o carinho do nego faz e é todo sentido. "Bem melhor" (João Cavalcanti e Marcelo Caldi), entretanto, é o fim desta alegria de ser inteira em si e com alguém, tantas mais as razões de poréns e senões de um amor que se revelou por um triz. Casal de ninguéns em que apenas um, ou uma, amava com liberdade (horizontal). A partir daí, de fato, cada um, cada qual é bem melhor. Bem-se-quer é saber, inclusive, recomeçar a sós.
"Indivídua" (João Cavalcanti e Pedro Luís) é a intransitividade masculina de ceder. Sua sintaxe objetificante só predica a sujeita tornada insana e contraditória - porque ou o abandonou, ou não é tão facilmente flexionável - conforme seu próprio nexo indecente, nada correlato, porém todo substantivo (super adjunto). Esse indivíduo é que atazana. A escolha pelo tango no acordeom de Caldi potencializa esta disputa mulher/homem sem vencedor.
"Garimpo" (João Cavalcanti e Antonia Adnet) é a síntese depois da dor. Amor é pedra bem polida e a polir, sopro de vida, lapidável pelo avesso. Seus pedaços podem esconder o lugar de cada um(a) entre fins, manhãs e recomeços, mas não se cura. Não se cansa, porque protege e segura. Este amor, horizontal, é brilho de céu de tão limpo, pedra extraída da jazida de si que vira pó, constituição, um sem-fim sempre início. "Dia lindo" (João Cavalcanti e Joyce Moreno), sinhá, é descanso. O acordeom de Caldi dá o tom do tempo e do movimento que não mais interessa. Tudo é este lugar, sob este dia lindo de aurora rompida. Tudo dura, o tempo não cura essa sina de voar, mas o mundo não tem freio. Entre alegrias, desenganos, medos e ganhos, vou indo descansar. É recomendável.
"A lenda de Maria Mariposa" (Marcelo Caldi e Bebel Nicioli) é Maria brincando de voar à beira do mar, aquela sina que nem mesmo um "Dia lindo" cura. A maré enche e nas asas da mariposa, ou da vida, Maria voa. Nós também. "De partir chegar" (João Cavalcanti e Joca Perpignan) é dolorosa, mas necessária despedida. Amor é oceano navegável, sim, mas bravio. A natureza da entrega total é bravia, e com a lua mandando chegar maré ou não, a ressaca quebra. Quando a vazante chama para dançar e não se está plena consigo, e em si, então, a gente chega partindo. O mar da mãe d'água de Caymmi manda buscar, e como boa filha, a mulher mergulha fundo neste mar de si.
"Não sós" (João Cavalcanti) é o Rio de Janeiro em suas peculiaridades, belezas, mazelas e, definitivamente, nós, porque plural - mesmo com as baratas da Central. Retornando ao início, mas já fim, "Demônios" (João Cavalcanti e Marcelo Caldi) pede violência. Não me reprima, ou se reprima, não me infunda ódio. Responda com violência a esta minha ira pelo desejo de viver o ainda não vivido, que meus demônios eu mesma mato. Ou convido para jantar. O risco em ser, e viver, 'me faz faminta, volúpia voraz ventre da vida - natureza sólida da tinta de mulher. Meu brilho tenaz cega quem não pode (me) ver, e é só apogeu, nunca queda. Humana, mas solene. Migalha de sol eu sou. Minha sobrevivência é rasura na linha que eu faço entortar. (R)existir assim, sem medo, é troféu. Cavalcanti e Caldi exortam tal resistência pela arte, causa e pó. Estrela, estrelas, e só.
Foto: Verinha Gaspar
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