"Aconteceu outra vez" (Zé Manoel), na interpretação penetrante de Fafá de Belém, evoca a perenidade de um amor ora fugidio pela incerteza de uma promessa que já sabidamente não se pode cumprir - amor mesmo jurado nunca é eterno -, ora assinalado pela verdade deste sentimento e sua longevidade juradas entre carícias. Nestes dias de céu ou completo desalento, pecado é não esquecer o passado para evitar mais dor.
O "Sol das lavadeiras" (Zé Manoel e Mavi Pugliesi) é resplandecido na voz de Elba Ramalho como a luz da celeste rosa meridional que alumia a vida dura das mulheres crioulas e trabalhadeiras de uma castigada terra sertaneja, faz secar suas lágrimas de cansaço e abrasa o chão do sustento de uma gente assim subjugada. Sombreado de palmeira, é assim que o dia faz nascer esperança tão teimosa.
"Deixar partir" (Zé Manoel e Vinícius Sarmento) tem a dor de um fim amoroso soturnamente ambientada pela voz de Ayrton Montarroyos, e não menos pungida pela lembrança hoje ausente daquela presença agora somente guardada neste peito feito morada. Antes não faltassem alegrias para a escolha da partida, porque mesmo ela é feita alegremente quando o amor se torna prisão.
"Canção e silêncio" (Zé Manoel) encontra na interpretação contida, mas passional, comovida de Ana Carolina o desespero já conformado pela dor da partida da pessoa amada, ou a persistência dessa lembrança achada de saudade em outros olhos, lábios, fotografias, livros e, sim, ausência. Quem se pensava conhecer partiu sem demora e, bom, sempre há aquela que nunca abandona uma memória já inscrita na pele e no coração.
"Cada vez que digo adeus" (Zé Manoel e Paulo Mello) é, na voz de Célia, a morte vívida de uma despedida não desejada, inesperada ou incompreendida. É presunçoso achar que a partida é um elo perdido, ou rompido, com o lugar pretensamente feito morada - caminho e lar são escolhas -, mas sem dúvida é melhor dizer adeus a quem não mais vive/deseja viver o sentimento com a igual intensidade que merece (em ambas/os amantes) ser vivido. Baden (1937-2000) e Vinícius (1913-1980) já ensinaram.
Tiganá Santana dança a "Valsa da ilusão" (Zé Manoel) já desiludida. Ninguém é mais companhia de ninguém neste baile, como tampouco serão estes "ninguéns" assim tão infelizes sem alguém ao lado. O sonho acabou, o sol acordou e este coração doído só pôde guardar a memória de uma triste melodia, esta, a nossa.
Ná Ozzetti clama a "Volta pra casa" (Zé Manoel) como quem olha o doce mar de Caymmi (1914-2008) transformar-se na tempestade da dor do abandono e espera interminável. Nem procurar abrigo no axé de Mãe Iemanjá parece ser consolo para um coração revolto em tamanha tormenta, mas nova manhã nascerá. Sempre nasce.
A inédita "Nós que nos conhecemos num navio" (Zé Manoel e Juliano Holanda) encontra na voz de Amelinha o tom mesmo do desencontro de quem, submerso em medos e desejos, a esmo sem o peso de suas roupas e da culpa, hoje, já se esquecera do outro - e de si - entre rodopios de pensamento sem tino. Ou segredos lavados no instante qualquer do tempo. Ainda assim, somos aqueles mesmos feitos de calor e frio que circulam entre navios no oceano d'alma e do coração.
Arthur Nogueira categoriza em "Motivo número dois" (Zé Manoel e Walther Moreira Santos): se da tensão brota o belo - e o arpejo do violino, o solo de violão e o ejacular são belos -, então, belo é também o toque da mão entre as veias azuis de um corpo que goza ao som do blues ressoado neste movimento. Em vez de dois, tão belo motivo deveria ser o primeiro. E único.
"Água doce" (Zé Manoel) é cor local. Só quem vive a seca do sertão em toda sua agonia é capaz de chorar ante a roseira florida de novo pelo aguar da chuva tão desejada. A voz de Juçara Marçal é a ventania que faz arrepiar o sertão inteiro em glória pela chegada de tal chuva. O azul do céu rodopia em alegria emocionada. Juçara também.
A inédita "Delírio de um romance a céu aberto" (Zé Manoel e Vanessa da Mata), que também dá nome ao disco, traz o próprio Zé Manoel narrando o romance de si consigo mesmo na margem do riacho-mar da própria alma. Eu, que era nada, conheci minha madrugada entre as margaridas plantadas do jardim e as estrelas do meu céu. Eu, nada, sou o rio que corre em minha potência, ventre de mundo, romance a céu aberto, delírio de amor - o meu -. O rio volta. E eu renasci na cama d'água dos meus braços que me envolvem neste abraço.
"Delírio de um romance a céu aberto", por fim, é sanidade louca em alienante normalidade. É respiro entre a pressa. É alívio ao turbilhão de sons espraiado como liberdade a ouvidos atentos, mas cansados demais para desacelerar ante um ritmo incessante e compassado por apressados passos. "Delírio" é fantasia de cor na cor de paisagens do coração. É o arpejo tenso de puro gozo. É gozo. É céu. E é aberto.
Arte de capa: Gabriel Martins
Depois da sua brilhante prosa, vou ouvir o disco que foi editado no Brasil. Já ouvi "Canção e silêncio" pela Ana Carolina, mas agora quero ouvir os outros. Obrigada pela divulgação. Precisamos de conhecer mais autores e cantautores brasileiros.
ResponderExcluirMuito obrigada, Margarida e, sim, precisamos ouvir, conhecer e reexistir no que é nosso. Eu é que agradeço o diálogo. Viva a arte e música brasileiras!
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