sábado, 11 de junho de 2016

A noite glacial do terno espanto de Soraya Ravenle e Marcelo Caldi na Casa do Choro

Ternura. Espanto. Mais ternura que espanto. Espanto ante a celebração do sentimento-artéria que celebra a própria vida, e a raiva ante sua traição pelos homens. Ternura plena na ausência, mas não ausente em plenitude. Assim foi "Entre o espanto e a ternura", show de Soraya Ravenle e Marcelo Caldi que, ontem (10) e hoje (11), inunda o palco da Casa do Choro, no coração do centro do Rio. Em um set desfilado sem interrupções para as loas do público, tal como uma narrativa teatralmente contada, o duo desata em sintonia um repertório de clássicos nacionais, internacionais e canções da lavra autoral de Caldi em pouco menos de uma hora e meia de espetáculo.

A crueza do combate-diálogo aí travado já se inicia com Soraya abordando "Desafio" (Paulo César Pinheiro e Dori Caymmi) antes mesmo de subir à área de palco. Era ela, um cavalo bravio e o encontro com o vazio no monte. Eram ambos, ou todos ali, feitos do mesmo feitio. É preciso ter olhos para enxergar na escuridão ou, por ela, enxergar o que de vazio há em nós, da montanha ao monte. A intervenção poética, aliás, realizada ao longo de todas as canções entoadas, de "Cavaleiro monge", do português Fernando Pessoa, confere o tom (próprio) de soturnidade à performance, igualmente ambientada pelo piano sempre preciso de Caldi.

"Entre el espanto y la ternura" (Silvio Rodriguez), não por acaso faixa homônima ao show caracterizado pelo trânsito entre a canção brasileira e as influências sul-latinoamericanas, são juízo e loucura entremeados - embora considere a normalidade vil alienação e a loucura, sim, resistência ante esta normalopatia que então vigora - com a vida cantada profana e sacralmente. La hora temprana trabaja el hombre entre su locura hasta siempre.

"Além do arco-íris" ("Over the rainbow" - Harold Arlen e E.Y. Harburg, versão em português de Claudio Botelho), na sequência, fora iniciada com a história narrada por Soraya de um menino que, ao passar pelo arco-íris, transformava-se em menina e em menino de novo quando fazia o caminho inverso. Sonho para alguns a se realizar, ou não, um dia, a estrela em nós há de brilhar sem preocupações com estereótipos a normatizarem a subjetividade em sua (livre) expressão, e o amor será a pedra de toque de esperança no porvir.

A esta altura, eu já chorava, meu bem. Saudade de você. Se não era amor, caso seja isto a ainda nos unir em alma ou sentimento, por que eu sinto essa saudade sem parar? Introduzindo "Por causa de você" (Dolores Duran e Tom Jobim) com versos emocionados e sob o choro do acordeom de Caldi, Ravenle pede que vejamos como tudo ficou, assim como ela. O mal já levara seu amor uma vez, assim como o colorido dos dias e das flores a enfeitarem a janela. A súplica pelo abraço e o fim de tanta tristeza pontuou este momento talvez dos mais pungentes do show. Foi de ir às lágrimas.

Ante tudo, então, só restava de novo cantar e, aí, "Tristeza" (Haroldo Lobo e Niltinho) espantou por um momento a dor daquela partida e tanto penar para fazer voltar a alegria. E assim foi.

Anjo, demônio, sinônimo, minha querida. Chave, tranca, casa, és a minha cara. Ao piano, Soraya proclama "Minha cara" (Kali C.) como quem sabe o que é e quer, e assim mesmo parte, porque já é parte de alguém. Ou de si mesma. É assim. És assim.

Aliás, é-se quem se é e, por isso, que se não me neguem estima. A extensão atingida com "Sabe-se lá" (Frederico Valério e Silva Tavares), fado imortalizado na voz da grande Amália Rodrigues, é de gente que anda, sim, por cima. Se Deus não nos acode, é a roda da má sina girando e lembrando a ruína de tudo. Em verdade, sabe-se lá se esta tal sorte, do mundo ou de Deus, é boa ou má. O breve desfaz-se, e ninguém sabe por que nasce. O azar não amofina. Andamos embaixo.

Por andar embaixo, canta-se, então, para anunciar o dia ou amenizar a noite. Canta-se para viver. Introduzida por um solo belíssimo do acordeom de Caldi, "Minha missão" (Paulo César Pinheiro e João Nogueira) é declamada em oração. Bonita e chorosa oração. É melodia que se acende (n)o coração, denunciando o açoite, o sangue varado à força da pele e a tirania da gente iníqua. Solta-se um grito da garganta nesta luta, a morte vinda do canto percorre o corpo e, aí, cumpre-se o dever. Lágrimas saltam. Saudade, João.

A canção seguinte, introduzida pelo tango "Boedo" (Dante Linyera) do acordeom de Caldi e dança de Soraya, é a ponte para a interpretação apaixonada, mas pesarosa de "Nunca" (Lupicínio Rodrigues). Afinal, nunca há de se fazer as pazes contigo. Ravenle pede que se diga àquele moço, por favor, como foi sincero seu amor e o quanto ela o adorou. Apesar da saudade e outras ilusões perdidas, ele está sepultado, e a paz no coração, bom, é o que a fará viver em paz.

Falando em viver em paz, saudar quem nos guia, protege e caminha conosco lado a lado está sempre na ordem do dia. "Maré cheia, maré baixa" (Marcelo Caldi) presta reverências à Iemanjá, senhora na mitologia iorubá dos mares e a seu poder soberano entre os peixes, e conchas, e contas, e ondas das águas salgadas. Odoyá, minha Mãe! Sua bênção.

Citando, ou desejando "Boa noite, amor" (J.M. Abreu e F. Matoso) para bons sonhos e a lembrança das carícias do beijo apaixonado, Soraya entrega tudo ao poder da poesia de "Orla de Plutão" (Camila Costa e Marcelo Caldi), em que, afinal, tudo pode acontecer. O toque pesado do piano de Caldi abre passagem ao desespero de "Cristal lilás" (Paulo César Pinheiro e Maurício Carrilho), cuja parte pronunciada por Ravenle faz quebrar qualquer coração, como o belo frasco do cristal que se desfaz ao ir ao chão. Paixões fugazes, ilusões vãs e o licoroso vinho embriagador não deixam mais o sabor de fruta mordida de amor antes deixado. Amar o amor, ou ser capaz de fazê-lo novamente, é querer tamanho mal em si outra vez, e esta é dor desconsagrada da qual não se quer sentir nunca mais.

Tenso, não? Para dissolver, e abstrair, Caldi conta uma curiosa história sobre o poder dos boatos. Em 1969, Carlos Imperial propagara que os Beatles teriam gravado uma canção do então ostracizado Luiz Gonzaga. Sim, você não entendeu errado. Os Beatles gravaram Gonzaga! Quer dizer... Verdade ou não, o resgate do rei do baião pelos tropicalistas à época inspirou o duo, sob a luz destes boatos, a fundir dois dos maiores sucessos de nossas personagens, "Asa branca" (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) e "Blackbird" (John Lennon e Paul McCartney) em uma mistura para lá de gostosa. What a great idea!

Aproximando-se do fim, nada melhor que deixar tudo "Divino, maravilhoso" (Caetano Veloso e Gilberto Gil) pedindo atenção aos perigos da esquina e, claro, força ante os desafios da vida, não se esquecendo do palavrão, da estrofe e do refrão. O bis ficou por conta de "A noite do meu bem" (Dolores Duran), que entregou a todas(os) ali a rosa mais linda existente e a alegria de um barco voltando ao cais após tanta ternura e (bom) espanto despertados em uma noite quase glacial de uma sexta-feira atípica carioca.


Foto: Thainá Seriz. 

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