sexta-feira, 10 de junho de 2016

A solidão conexa, coletiva e desconectante de "Dance com seu inimigo", novo disco da cantora e compositora carioca Julia Bosco

O tempo parece, de fato, ser a toada que conduz Julia Bosco no trilhar de sua trajetória enquanto cantora, compositora e intérprete. Se em "Tempo" (MCK/Tratore, 2012), primeiro disco da carioca, o intimismo confessional coloria a crônica urdida pelas paixões às vezes romantizadas pelo que se pretendia (e se queria) perenizar, "Dance com seu inimigo" é a antitese, e não antítese, de tudo até então entoado como verdade.

O recorte deste segundo trabalho de estúdio é o espaço-tempo do agora, ele mesmo um mix de solidões conexas a uma coletividade igualmente perdida no buraco cibernético global em uma conectada solidão, porque perdulária e insistente. A maturidade vocal/musical, artística e intelectual desfilada neste disco revela, não menos, certa reconciliação com o perten(s)er a mulheridade para vivê-la em seu limite, núcleo mesmo de experiências diversas. Ser mulher é, sim, saber-se só. As paixões, delírios, dilemas, dramas e a vontade-bigorna-abismo catalisadora da geleia geral então proposta por Julia são tecidas, claro, com todo bom humor, mas uma dor, ou várias, está aí sedimentada. O grito de "Dance com seu inimigo" é o ruído de pensamento por vezes encoberto.

"Dance com seu inimigo" (Julia Bosco, Gustavo Macacko e Donatinho), faixa-título, é o fim transformado em início. Melhor não poderia. Aliás, a ironia como introdução da narrativa contada ao longo das dez canções (muito bem) escolhidas para compor este trabalho é a pedra de toque do nosso tempo: coexistir com o diverso nem sempre disposto ao contraditório. Literalmente, dançamos entre inimigos.

"Tanguloso" (Julia Bosco e Donatinho) é pura transa. Ao mesmo tempo que denota um sentimento líquido e antitudo dos relacionamentos contemporâneos mediados pela virtualidade, com todas as hierarquias micro e macropolitizadas, é uma vazão das pulsões sexuais reprimidas, docilizadas e normatizadas no corpo feminino – se considerada a origem do contradiscurso. Afinal, é uma mulher que vocaliza a sujidade deste desejo e encontro carnais –. Senhora de si e seu corpo, ela anseia outro corpo para fundir-se em uma só, síntese, fim e meio dela mesma. A fome é saciável apenas quando se come o desejo de comer você. A ideia do tango sujo, de cores eletrônicas, dá o tom da visceralidade de uma ossoconexão "delírica". A medida exata é a desmedida da extravagância pretendida, e o arranjo acompanha esta guerra narrativa.

"Maçã última" (Gisele de Santi) é simplesmente a paixão desejada, amor a realizar no porvir, mesmo platônica. Canção leve e de arranjo inteiramente afinado a esta ambientação.

"Volume" (Ana Clara Horta, Gabriel Pondé, Miguel Jorge e João Bernardo) é groove transante e que faz transar, apela o apelo por viver e morrer de amor, inebriar-se pela química desta combustão só para complicar. A caixa de som é da boca pra dentro, um pulsar; o ruído ensurdecedor e inominável. Em vez de abaixar, aumenta-se o volume do barulho da cabeça, acende-se o desejo do silêncio de um beijo e deixa-se o corpo reagir a este mortevida num autofalante, quer dizer, coração.

"Quem me passa o coração" (Julia Bosco, Juliana Sinimbu e Marcela Bellas) conecta-se a "Tanguloso" pelo retrato da liquidez de todas as relações mediatizadas pela virtualidade e interiorizadas pelo individualismo capitalista: passa-se tudo, menos o coração, sede do verdadeiro sentimento. A participação da paulistana Tulipa Ruiz na referida faixa dá leveza a esta crítica ácida.

"Quase nada de novo" (Fernando Temporão e César Lacerda) é a tentativa de encontro no desencontro. Uma balada romântica para além do entrelace amoroso: perder o amor é encontrar a si no fim, com toda a dor, solidão e avessos. E isto não é ruim. Qual de nós estará livre de nós mesmos e de mágoas?

"Cada dia, um dia" (Julia Bosco e Donatinho) é fotograma do impasse de tudo e entrepasso para o nada de um fracasso amoroso, ilusões desiludidas com sangue e dor tiradas por alguém a quem se tanto amou. Cacos, ruínas, nada além. Um coração já tão fragmentário por ser e viver a mulheridade desconecta-se de si para nunca mais se encontrar, tampouco se perder na emoção de um sentimento. Alento para o desalento de não saber amar. Cada dia é um dia para o fim. Dá vontade de chorar.

"Cartas marcadas" (Dona Onete) é leveza, irreverência e força. O arranjo swingado só aprofunda o mergulho que a voz de Julia faz na história tomada como sua. Ela, a mulher, dribla a malandragem, porque é malandra e conta com a proteção das encantadas (para quem é da curimba) que sabem dominar o seu corpo no baile das ruas e da vida.

A releitura de "Vampiro" (Jorge Mautner) na balada de tom country é embriaguez de uma felicidade em transar uma canção-reflexo. A voz de Bosco dança nessa navalha. Tudo parece o sol do meio dia.

"Pra gozar" (Julia Bosco e Emerson Leal) é o final que amarra este disco-síntese da nova (ou sempre) realidade de Julia, delirante verdade que transmuta em si e volta ao desenlace para ser laço. Ou não. A antítese sintética das solidões coletivamente conectadas no limbo cibernético compõe o caldo intelectual, cultural e pessoal em que a cantora e compositora se alimenta para desestigmatizar silêncios, angústias e enfim pertencer ao sonho (unimúltiplo) de ser quem é no teatro da vida.


Foto: Donatinho


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