quarta-feira, 29 de junho de 2016

Três gerações de amor e resistência cultural do canto feminino negro

Em tempos de golpe jurídico-empresarial-legislativo-midiático contra governos democraticamente eleitos, fascistização crescente e forte reação conservadora à desmarginalização de grupos historicamente silenciados, a arte tem seu papel militante recolocado à baila. Âmbito primaz de livre expressão das subjetividades e respeito às diferenças, as manifestações culturais também atuam politicamente no mundo. "Como ser artista e não refletir a sua época?", diria Nina Simone (1933-2003). Por isso, iniciativas como a palestra "Africanidade brasileira e sua influência na música popular", realizada ontem na Escola de Música Villa-Lobos como preâmbulo à série musical "Voz negra em três gerações", protagonizada por Marina Iris, Luiza Dionizio e Áurea Martins no Centro da Música Carioca amanhã (30), sexta (1º) e sábado (2), são urgentes e necessárias ao atual cenário político de retração de direitos e (árduas) conquistas dos movimentos sociais negros e feministas negros em pouco mais de dois meses de administração interina.

Mediado por Edu Krieger, diretor musical do espetáculo, o bate-papo iniciou-se com a performance de Iris, Dionizio e Martins do "Canto das três raças" (Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro) e a discussão sobre o racismo na mídia brasileira. A recuperação acertada do histórico escravista do país para embasamento do debate foi a pedra de toque na e para a consecução dos temas ali arrolados, com destaque para a importância da representatividade na (re)construção da combalida autoestima negra, negada em expressão e dignidade, a auto-organização como mecanismo de sociabilidade, defesa, solidariedade, formação de uma identidade de luta e resistência política do povo negro, além da subprojeção de mulheres e homens negros especificamente na cena musical. Como ilustração do último tópico, Krieger aventou o caso da cantora baiana Margareth Menezes, cuja militância é emudecida pelo apelo midiático de Ivete Sangalo e Claudia Leitte como expoentes do axé baiano, elas brancas em meio ao estado da federação com a maior população afrodescendente do país. 

O samba inevitavelmente foi lembrado como reduto de combatividade e desfile da dor, sofrimento, sociabilidade e resistência negros, outrora criminalizado até a primeira metade do século passado e transformado por Getúlio Vargas (1882-1954) em símbolo identitário nacional, agora mercantilizado, midiatizado, ressignificado e reapropriado como artigo exótico/folclorizado de uma cultura branca hype elitista e androcêntrica. Sim, porque sendo o racismo elemento estruturante e estruturado da sociedade brasileira, o machismo também cumpre tal função. Suscitada por Krieger, a questão da mulher negra e da cristalização de seu papel social mesmo no mundo do samba, considerado acertadamente por Íris "reduto confortável do machismo", acabou fenecendo no âmbito da discussão, não obstante o furor inicialmente instado. Reconhecendo o saber instituído em torno da hipermasculinidade do homem negro, ou "homem-pênis", conforme a literatura negra ativista faz aludir na crítica ao padrão falogocentrista masculino europeu, e mesmo a existência de um parâmetro estético eurocêntrico a permear o imaginário coletivo em torno do "belo", as palestrantes não avançaram no maior destrinchamento dos efeitos de discursos e práticas discursivas hegemônicos sobre a negritude e a diferenciação do corpo feminino negro - médica, simbólica e culturalmente hiperssexualizado - enquanto estigma, estereótipo, negativização e entrave à corporalidade, seu potencial subversivo de desmobilização das hierarquias raciais e de gênero inclusive na ocupação de espaços não historicamente destinados à presença de mulheres, à autogestão narrativa e à afetividade.

O exemplo suscitado de Alaíde Costa (1935-) e da própria Áurea Martins ensejava a discussão sobre o perigo da quebra de papéis sociais na reivindicação de outros espaços - e gêneros musicais, culturalmente falando - que não os originalmente consagrados à atuação negra feminina e sua importância enquanto estratégia político-ideológica emancipatória, de alteridade e abertura ao assenhoramento negro feminino na autoralização narrativa de suas próprias vivências. A mediação de Krieger poderia ser alvo de questionamento, em termos da necessidade da autogestão feminina negra no debate para fortalecimento interno de laços (sororidade), troca de conhecimentos e experiências comuns sem a tutela e validação brancas, a despeito de sua assinatura como diretor musical da série. A notável timidez da mesa na argumentação dos pontos gradativamente levantados e correlatos ao problema central mostra o quão louvável - e importante - é a iniciativa de vocalizar as intérpretes e artesãs negras da canção neste processo eminentemente político de desmantelamento do machirracismo e de compartilhamento destas vivências para a interrupção do fluxo de violência historicamente destinado a estas populações em definitiva reconciliação com este passado de sofrimento, humilhação e dor do povo negro. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CORDEIRO, Hildalia Fernandes Cunha; DOS SANTOS, Magnaldo Oliveira dos Santos; DIVINO, Jackline Pinto Amor. A poética feminina negra. Borrando os contornos da normatividade. Comunicação apresentada no III Seminário Internacional Enlaçando sexualidades, realizado de 15 a 17 de maio de 2012, na Universidade do Estado da Bahia (Uenb) - campus I.  

bell hooks. Vivendo de amor

Foto: Cyntia C. Santos


     

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