segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Maria Rita, seu "Samba da Maria" e a gente que lembra quem gosta da gente

Já é sabida a queda desta redatora por vozes femininas. É com elas, e somente elas, que divido a mulheridade e o orgulho em perten(s)ê-la. E vivê-la, mesmo em meio ao ódio e fluxo de violência se nos historicamente dirigido. Com elas, sob seu grito, força e história, história de todas - e tantas - mortas em batalha é que (EU) sou. E como sou! Por isso, foi com emoção que vivi - e fui - a noite de Maria Rita em seu "Samba da Maria", no palco do Metropolitan, no sábado último (20). 

Lembrando a tradicional formação de um samba de roda e cercada por Davi Moraes, Fred Camacho, André Siqueira e Marcelinho Moreira, Maria, esta companheira de jornada, inicia o show lembrando o quanto se labutou para a bonança chegar com o fim da tempestade em "Quando a gira girou" (Claudinho Guimarães e Serginho Meriti), sucesso na voz de Zeca Pagodinho. Aliás, a bonança sempre demora a chegar quando se faz da labuta sua vida. Talvez ela nunca chegue, porque com a sorte não se conta. Não se pode contar. Ela só faz desaparecer. A gira gira, e ninguém suporta. Ninguém se importa. Tudo se perde, mas é sempre tempo de agradecer. Agradecer quem 'tá contigo e não abre, 'te inunda de axé, ensina o que é companheirismo e lembra a gostar de quem realmente gosta de ti. Maria é isso. Maria é luz, é axé, é alegria. É sorriso, porque sabe o valor da lágrima no rosto. Lágrima de dor, abandono e solidão. Lágrima de história, de tantas histórias. 

Na sequência, "Alto lá" (Arlindo Cruz, Sombrinha Cruz e Zeca Pagodinho) e "Coração em desalinho" (Mauro Diniz e Ratinho) inauguram uma ruptura. A desilusão amorosa e a raiva pelo amor não correspondido, em outras palavras a violência deste sentimento e o direito de senti-lo, são vocalizados por uma mulher. Esta inversão simbólica, e de gênero, assume uma força arrebatadora. Autogestá-la narrativamente é se fazer ouvir e ver. Só aqui, muito choro e peito aberto. Choro que é o banho da dor, chuva pra alma lavar ("Abre o peito e chora", Serginho Meriti, Rodrigo Leite e Caíque). E após tanta chuva e dor, a bonança. A alegria do amor moleque, companheiro e brincalhão, e a esperança de ser feliz, voltam com "Tá perdoado" (Arlindo Cruz) e "Num corpo só" (Arlindo Cruz e Picolé). A magia de sentir e ser o amor é lembrada por "O que é o amor" (Arlindo Cruz, Maurição e Fred Camacho) e o pedido pra não desarrumá-la, ah, vem inundada pela interpretação sempre emocionante de "Rumo ao infinito" (Arlindo Cruz, Marcelinho Moreira e Fred Camacho). Para quem insiste em desarrumar, "Cara valente" (Marcelo Camelo) neles! A gente prefere resolver tudo isso aí no amor, mas se não der, não tem blá-blá-blá, não. Na dor, é só rancor, dissabor e nada mais. Em vez de tanta confusão, "Cutuca" (Davi Moraes, Fred Camacho e Marcelinho Moreira), vai? Carindê, carindá! 

Já "Meu lugar" (Arlindo Cruz) é pra quem se habilita a lembrar que o nosso lugar no mundo é feito de luta, dor e suor, e samba até de manhã. Ai, que lugar! Seu nome é doce dizer. A saudade só faz relembrar. Ele pode ser coberto pelo asfalto, sua história demolida pela sanha da gente iníqua e invasora, como "Tradição (Vai no Bixiga pra ver)" (Geraldo Filme) categoriza e "Saudosa maloca" (Adoniran Barbosa) faz gritá e chorá - Maria Rita se derruba o coração chorando e nóis fica cá razão de chorar também -, mas lá o samba não morre, ninguém tem permissão para chegar com sacanagem e dispersar a nossa gente unida, ou passar a mão na nossa bunda, só porque está exposta na janela. Sim, "Não deixe o samba morrer" (Edson Conceição e Aloísio Silva), "O homem falou" e "É", ambas de Gonzaguinha (1945-1991), foram ovacionadas. "Vou festejar" (Neoci, Dida e Jorge Aragão) lembra que quem sacaneia vai chorar e pagar por tudo de ruim que faz sofrer. Diante disso, só resta encarar os desafios de frente e acreditar que vai melhorar. "Bola pra frente" (Xande de Pilares e Bernini), porque a vida é essa corda bamba pra quem se encontra no amor, não desencanta ou só sente saudade, como "Do fundo do nosso quintal" (Jorge Aragão) celebra. Saudade de quem sempre encantará. Saudade de quem cujo canto, canto de mulher, sofrido, cheio de dor, sempre ecoará no coração de cada uma e servirá de inspiração. Emoção. "Simplesmente Elis" (Zeca do Cavaco, Zé Carlinhos e Ronaldinho Fundo de Quintal), no medley com "Tradição", são a raiz de Rita e a minha chave de encerramento. Sob a luz de Elis e Maria, lembro outra vez que o grito de mulher é a palavra de uma garganta cujo silêncio fora enfim traído para se perenizar enquanto corpo e liberdade incontestes. Palavra, signo de poder outrora negado e, hoje, vingado. Signo da liberdade sangrada, ansiada, longe de ser conquistada, considerada ameaça, mas horizonte da igualmente sonhada paz após séculos de luta. Este vento (de liberdade) ainda vai agitar as ondas do mar...


Foto: Daniel Pinheiro

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