sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Iara ira, o grito-corpo-sujeito de mulher e os rios revoltos deste mar de ser e viver

O peso do silêncio afoga. A metáfora marítima, fluvial, aquática ou o que queira é real. Afoga, porque mata. Mata de dor. Mata em silêncio, porque ao silêncio torna e faz isolar. Isola, porque precisa ferir. E fere sem temor. A entrega de mulher, sempre comovida, é de boca fechada, caixa de som. A figura folclorizada de Iara esconde a potência do canto ancestral feminino em sua força, sagrado, orgulho, ancestralidade e amor, todos historicamente perseguidos, quando não mutilados. Devolver-lhe a voz é jogar luz sobre uma, outras, todas histórias que o corpo calejado de mulher traz sangradas na pele, poro d'alma. Voz que, mesmo calada, objeta o grito sujeito de mulher, político, da palavra-atravessamento em apogeu, causa de fins, mortes e reinícios vorazes, ventre de vida ruidosa, de vermelho-sangue e branco mar.

Assim é "Iara ira", espetáculo musicoteatral idealizado por Philipe Baptiste, direção artística de Caio Riscado e direção musical de Thiago Amud protagonizado pela tríade sereiática da senhora das águas doces encarnada por Duda Brack, Júlia Vargas e Juliana Linhares que tomou o palco do Sesc Copacabana na noite de quarta-feira (9) em sua segunda e última sessão. As interpretações primorosas, e emocionantes, de cada uma são a própria mulheridade em garganta, porque grito de silêncio traído, e orgulho de perten(s)er ao viver e sentir mulher. Sentir de experiência material única, mas múltipla em resistência. Vivência de dura luta, porque só se existe lutando. Certeza esta que sobre-vive entre os limites do corpo e as línguas cansadas de recato falar da "Casa forte" (Edu Lobo) de rock mulheril edificada sobre a fúria de desejo mutilado. A voz-amparo do início de tão vasta jornada encontra também na "Mãe da manhã" (Gilberto Gil) o canto de escura, mas liberta dor de luz nascente do novo alvorecer no caminhar-silêncio da vida.

Júlia e Duda rezam em seguida a transa qualquer que "Da maior importância" (Caetano Veloso) revela no gosto não-gosto da palavra de desprezo otário pela complexidade em ser e existir como se é. Há homens e mulheres, e uma mulher é sempre uma mulher para cada uma, ou outra de mim. Se não há pique, não serei eu a dizer que deve ficar. Amor é dupla disposição. Amor é independência.

"Não duvidei" (Caio Prado) é precipício, doce sina de passagem a uma virgindade devassada, mas transada em sua ferocidade. Luz é a minha voz questionada em suas sublimes ilusões traídas. A agonia é de amor à ira, ao sangue e aos olhos, mundo de amplidão. O peito aberto de Duda nesta canção é pra nunca mais voltar, ou assim ficar por um triz.

Júlia engrossa o coro de "Minervina (A lua girou)" (Milton Nascimento) pelo giro dos seus meus nossos braços na lua do corpo-amor próprio. Eu bem queria fazer dos braços seus, ou meus, morada de amor, mas tudo parece mudar a cada nova rotação, seja da lua ou seu humor. Palavra é poder, e se eu mantenho a minha de mulher, você pode, e deve, sustentar a sua de homem. Ou moleque, própria da indecisão/descaso seu.

"Mana" (Iria Braga), bradam as três, teus cabelos são o arvoredo da vida, seus colo, afago e respiração. Por sê-lo, vivê-lo e pertencê-lo, há quem se apoie nos galhos e os faça cair pela sangria de um amor incapaz de expansão e unimultiplicidade. Então, mana, para evitar tua morte em vida - e não há morte pior que a da vida em vida -, toca fogo neles. O que neles é chamariz, em ti é força e proteção. Protege-te tocando fogo. Deixa-os arder neste fogo-catarse que é teu. Tua é a vida, e sua pujança é contigo. Toca fogo. Toca-te fogo e te incendeia de manhã bem cedo.

Toca fogo até sarar. Arder cura. Sangrar cura. Juliana grita "Cortei o dedo" (Carlos Careqa) como quem ainda não sarou da dor de amor, ou transborda o peito ao último respiro de sentimento que se lhe inunda e faz ser. Duda e Júlia acolhem-na em tanto pesar, mas ela, nós sangramos depois da hora. A hora é o tempo de amar o amor que não passa e perdura, mas afoga e imerge fundo. Só se volta quando ele vai de vez.

"Ausência" (Ednardo) era o som da cantiga entoada por Juliana ao luar e cujo som já não se ouve mais. A partida sem adeus destruiu a paz, a rua e a esperança em trilhar aquela estrada amiga hoje estranha. A voz perdeu-se entre os caminhos em espinho-flor, e ninguém ficou no lugar. Nada ficou. Ou tudo, porque vazio de ninguém e repleto de mim.

Ninguém quer liberdade pra ninguém. "Coquetel molotov" (Ian Ramil) e Duda anunciam: essa merda de papinho furado de não poder ser e entregar-se ao arrebatamento por incapacidade, ou profundidade, é de foder. Ouve, não reflete, é campeão e perdedor quando convém, está sempre entendendo nada e tem tudo a dizer. Para-palpite. Sai, que essa cara de quem quer atrapalhar está é empatando a minha foda. Vou meter até me acabar, eu preencho meu vazio. Se boceta eu sou vadia, eu furo o dedo com a minha.

Aroeira, artemísia, arruda, alecrim e erva-cidreira, alfazema e manjericão. Dobradinha, hortelã, camomila e cambuí. E aroeira. A "Gira das ervas" (Luli, Lucina, Mário Avellar e Maria Maria) evoca o poder curativo das ervas na cicatrizes das dores de amor, como o próprio canto de Ossanha o faria. Júlia é Ossanha, e a voz em silêncio de dor ferida se faz sarar quando deste brado de cura, afago e axé. Um "Coração aprisionado" (Luli e Lucina) assim não canta, lembra Juliana a seguir. Não dança. A garganta se estreita, cala e faz-se ela mesma abrir. A defesa minha, e da rosa, é espinho-de-ira-em-flor. A fera sou eu, e eu estou à solta. Solidão-garganta é isso. É assim: silêncio. Silêncio é busca, e busca é sempre caminho.

É na "Negra mata" da escuri-dor do coração que se anda, perde e volta a se achar para cair de vez em si, o seu meu lugar, diz Júlia. Das pedras-passos no chão, repousa um corpo inteiro em agonia por se transar viver e ser, com ou sem amor.

Veja só do que você já se arrependeu com essa história de não viver, sentir, ser. "Carta branca" (Baden Powell e Paulo César Pinheiro), Juliana, nós pedimos que ficasse, mas sempre sem sucesso. Acho que nunca conheceu de fato quem estava ao lado, ou alguém. Nunca conheceu algo além de si mesmo. E não o fará, porque eu fui embora sozinha de você sem você.

Moça, donzela, puta, santa, a forma de se arreganhar é que muda. "Coco do coco" (Aldir Blanc e Guinga) denuncia a polícia sobre as xerecas de quem não nega um bom coco e só peca em não aproveitar a vez desse tal coco, ou tais, que se apresenta. Quem não aproveita está é de manha, porque não gozou. Fingir-se donzela, ou virgem de ouvido, facilitou foi a molhadinha, porque nada mais fetichista para macho que a fantasia de virgem deflorada pelo pau-toco de pouco tudo. Moça, eu faço amor gostoso com ele, sai pra lá. Ele não quer você, mas eu posso querer. "Mainha painho" (Companhia da Lapada), eu gosto dele, mas também gosto dela. Ele já me comeu, eu o comi, comi de novo, sarro, volto a sarrar e ainda é pouco. Ela quer mais. Duda, Júlia e Juliana querem mais. Eu quero mais.

Eu quero mais, porque sou a dobra de mim sobre mim mesma. Sou minha outra, aquela uma em constante batalha de mim contra todos e de volta a mim mesma. Eu, presença desordeira de mim, difuso sentimento talhado de mundo, o meu, nervo exposto em vivo sofrimento. "Contenda" (Guinga e Thiago Amud) é passo a esmo, pulso sobressaltado, sombra rival que, inimiga, amigavelmente me acompanha. Vou e volto em desvario, arranco e me arrancam o (meu) sangue arredio em oferenda, esta cor-ação esconjurada em corpo de mulher.

O corpo é da mulher. Ela dá pra quem quiser, até para outra mulher. É ela o seu corpo, feixe de sombra, som e luz do mundo. "Iara ira" encerra sendo a fúria feminina em rubro-branco veio de rios revoltos por desembocar no mar, vasto oceano de vário ruído. A voz é clara, e os ventos de mulher acalantam a nova era de suas filhas renascidas na dor de outra manhã. Mulher, quem encara quando somos todas, e outras, e tantas, e várias? Quem suporta o grito-corpo de sereia da garganta sujeita de mulheres reexistentes em sua politicidade? Iara é Duda, Júlia e Juliana. Iara é três, várias e uma. Iara é todas, tantas e nenhuma. Iara é mar destes três rios-redemoinho de Brack, Vargas e Linhares. Iara é sul revolto em flagrante desnorte. Iara é riso benfazejo. Iara é desejo de mulher insolvível. Iara é grito de vário ruído histriônico e potente de mulher. Iara é garganta de mulher, palavra-ventre encarnada. Iara é mãe e filha. Iara é colo de rios. Iara é ira.


Foto: Francisco Costa

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