sábado, 31 de dezembro de 2016

Rita Lee, 69 anos, uma autobiografia e esse monte de gente feliz

Silêncio protege ninguém e só faz afogar. Silêncio mata, mas após uma vida de intensa luta, é recompensa merecida. O silêncio nunca é absoluto. Fala-se menos, enerva-se (muito) pouco e a qualidade do discurso, por outro lado, melhora. Penetra com força. É força. Autogestá-lo é demonstração de poder. E ela tem todo poder. Rita Lee assenhora-se da narrativa de sua própria vida, e em "Rita Lee. Uma autobiografia" essa tal roqueira conta com irreverência, bom humor e verdade capítulos importantes de sua própria trajetória de vida e, claro, na música.

Ao contrário do que possa parecer, este não é um livro para amantes de música. Alguns de seus detratores consideraram a narrativa vaga, quando não arredia a nomes de personagens considerados chave - quereriam-nos protagonistas, se duvidar - e mesmo a uma sequência lógica, ou cronológica, de fatos. Quem esperava uma história do roquenrou tipicamente brasileiro, ou da música popular no Brasil a partir de marcos temporais sobretudo masculinos, decepcionou-se. Ainda bem. Rita fala abertamente de si, seus desafios pessoais e aqueles enfrentados pelo pioneirismo como band leader em um gênero hegemonicamente dominado por machos insatisfeitos, quando não incomodados, pelo carisma, simpatia, domínio de palco e versatilidade de uma mulher em posição de liderança, como a detida pela paulistana à frente d'Os mutantes. Seu compromisso é consigo mesma e a própria história, como, aliás, uma autobiografia faz subentender. Ou deveria. A autora oferece subsídios literários suficientes à identificação das temporalidades iluminadas em sua narrativa e referências prévias a cada um dos atores e atrizes aí envolvidos. A crítica, portanto, parece versar sobre o estabelecimento de marcos não afeitos ao universalismo masculinista na descrição de feitos pessoais e políticos conquistados, todos à revelia de uma sanção paternalista. Fofos.

Diferentemente do culhão sempre exigido para tocar rock'n'roll ou mesmo fazer música - que campo/área do saber não é hegemonizado por homens, machos e afins? -, inclusive de mulheres, a bocetalidade de Rita sobrepôs-se a estes reveses e segue, até hoje, inspirando outras a tomarem o lugar de direito no que a arte tem de plenitude, catarse, inspiração, sentido social ou fuga aos territórios inóspitos de dentro. Empunhando ou não diretamente tal bandeira, reconhecendo-se ou não a importância do movimento organizado de mulheres em conquistas notadamente representativas para o avanço da condição feminina nos âmbitos pessoal, político e artístico - ainda um estigma que se nos sobrepesa pela manutenção de um domínio masculinizante -, o exemplo de Rita Lee é de sentir prazer de ser quem se é e estar onde está. Ou se conseguiu chegar. A menina-menino de cabelo curto à la baiana, intensa, liderou a si e seu triunfo enquanto cantora, compositora, estrela maior do rock no Brasil, sim, e mulher. Quedas são inevitáveis a quem tem de ser e se fazer forte para sobreviver ao caminho, e isto não é sinal de fraqueza. Rita pede perdão, mesmo não estando errada. E não esteve. Entre ápices e declínios, acertos e deslizes, amor, vícios, virtuoses e virtudes, seu maior rock de todos foi, e é, sem dúvida, fazer um monte de gente feliz.


Foto: Guilherme Samora/Globo Livros

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