quinta-feira, 16 de março de 2017

LiberTango, Soraya Ravenle, samba-tango-MPB-samba e coração ao Sul

A rivalidade historicamente forjada entre Brasil, Argentina e outros países da América Latina hispânica foi e continua sendo forte empecilho para um diálogo cultural ainda mais estreito entre suas respectivas formações sociais. Ressentimentos geopolíticos à parte, ou não, fato é que "Quatro ventos", o mais recente trabalho de Estela (piano), Alexandre (saxofones e flautas) e Marcelo Caldi (acordeom) como o grupo LiberTango, em parceria com a cantriz e grande dama dos musicais brasileiros Soraya Ravenle, trouxe novo respiro a tais conturbadas relações durante a estreia ocorrida no charmoso espaço do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF), na última terça-feira (14).

Com direção de Isaac Bernat, direção musical e arranjos de AlexandreMarcelo Caldi, e materializado a partir de campanha de financiamento coletivo também geradora do álbum homônimo comemorativo dos 20 anos de formação do trio, "Quatro ventos" inicia-se com a abertura do diálogo brasílico-latino-portenho convocada por Estela Caldi e Soraya Ravenle na récita dos versos de "El cuerpo canta", de Miguel de Unamuno (1927), nos quais o sangue uiva o murmúrio dos mares e o baile do corpo a cantar ante a escuta, atenta ou não, do homem e mulher comuns. A interpretação sempre voraz e emocionada de "Rosa dos ventos" (Chico Buarque) por Soraya faz verdadeiramente crer que do medo tolo e ressentido de mágoas entre uma e outra cultura, talvez, criou-se a tragédia de trocas estanques sem uma lástima para socorrer. Ah, se dos céus deste continente sofrido e explorado em sua dor chovesse o perdão... A consciência da real explosão atlântica não há de contemplar tardiamente tamanho despertar. Não pode.

Por outro lado, existe quem diga ser tal rebento natimorto e este samba, torto. Falso amor exorcizável e sem rumo, o melhor é distanciar-se de ti. Os sopros de Alexandre Caldi evocam os "Demônios" (João Cavalcanti e Marcelo Caldi) não reprimíveis de mim para fazer-te e outras sujeitas/outros sujeitos sem rumo para desaparecerem com seu dom de existir a dez mil léguas daqui. A "Extinta chama" (Alexandre Caldi e Sérgio Ricardo) que se nos conduzia já não arde mais. Avivá-la de contratempos, desatino e alarde cala de desespero esta melodia. Os amantes/As amantes silentes, ou simples dissidentes, ruminam em cada cama seu ódio secreto e o logro de tensões tão extremas.

Os ligeiros passos tangueados de Soraya para "Orla de Plutão" (Marcelo Caldi e Camila Costa) recordam que entre os pés-asas do prazer de amar e viver esta arte a fantasia pode, e deve, acontecer. À orla morna de Plutão profetas dizem sim e poetas podem ver a sorte de um amor cujas loucuras não se podem pronunciar. Ah, na parceria tudo pode acontecer... E aconteceu inebriada na voz suave e amorosa de Soraya. Que delícia de canção!

¡Pero compasión no existía! A tragicômica "Mi querido bandoneón" (Tim Rescala) encontrou na magistral encenação de Soraya e Marcelo Caldi das agruras de um jovem bandoneonista que, ao falhar de seu instrumento e uma plateia insensível ante o problema, joga su querido bandoneón a la gente, um dos pontos mais altos do show. A quem interessar possa (o spoiler), a história não teve revolta, não. Una doce chica ofertou ao pobre instrumentista um sanduíche de queso (queijo) e jamón (presunto) - porque a fome nestas horas é que domina uma alma aflita - e, já sem excitación, um poderoso figurón balançou o coração de nosso aventureiro ao sacar una caja con un enorme acordión. Moral: ele foi tocar baión. Olha o forró!

Como boa autocomiseração masculina, "Indivídua" (João Cavalcanti e Pedro Luís) traz Alexandre e Marcelo debatendo sobre a sintaxe inflexível de uma sujeita predicativa a seus olhos insana e, porque objetiva, super adjunta. Mulher dessas tem nexo indecente e linguística maltratável, segundo a bagunça masculinista assídua. Pobres homens. Só que não. Esquecíveis são eles, pois não vivem a contradição de ser adjetiva em carne viva. Essa ser humana enlouquece por ser intransigente, incompreensível para uma fêmea, e transbordar em seu gozo. Literalmente. Soraya arranca do (meu) lábio mordido de raiva aquele riso de satisfação pela plenitude parágrafa de uma mulher substantiva em toda sua sentença. Soraya sou eu, e nós somos. Temos dito.

"Invierno porteño" (Astor Piazzolla) e "Fuga y misterio" (Astor Piazzolla e Horacio Ferrer) aplacam as crases colocadas por "Indivídua", e situam novamente o grupo em sua sempre presente homenagem ao compositor argentino Astor Piazzolla (1921-1992) em números instrumentais belíssimos e não menos permeados pelo cantarolar de Soraya à baila de cada acorde.

De repente, entrou-se em um "Labirinto" (Marcos Sacramento) com a chegada de Marcos Sacramento naquele espaço-tempo atual, mas que não passava noite e dia. O duo com Soraya era salto em euforia, e o sonho mandava beijos do abismo. Sim, de lá, tamanho riso real. E alegria. "O samba e o tango" (Amado Régis, 1937) trouxe Sacra gingando qual pandeiro, porque, afinal, em terra de samba, o próprio não podia faltar ao encontro do parceiro tango - sobretudo, e inclusive, em sua matriz africana -. Tango toca lento, toca ligeiro, pero no Brasil é diferente. Sempre que se canta, dança e possa, o sambinha é cheio de bossa. É Rio de Janeiro, mesmo agora em 2017 e com bispo-prefeito carola. Momentos.

Graças que a manhã já vem no "Acalanto" (Dorival Caymmi) de Caymmi e dos anjinhos a cantar a já tradicional cantiga. Não pega esse menino com medo de careta. "Duerme negrito" (Atahualpa Yupanqui) e "Arrorró mi niño" (folclore mexicano) trazem Estela Caldi embalando a criança não menos assustada com a ausência de sua mama ou qualquer outra proteção, e alguns pedaços de coração talvez ainda dentro em nós. Doce ninar.

Eis que a história de uma menina e seu primeiro amor aparece engarrafada no palco como oriunda do mar, lida e cantada por Soraya em alemão com direito a tra lá lá lá. "Maré cheia, maré baixa" (Marcelo Caldi) vem lembrar a senhora serena do mares e, tal qual a menina, os amores perdidos entre peixes, e contas, e ondas, e peixes, e contas, e ondas, lágrimas sem fim. A ela, rainha, nós cantamos para tirar essa dor de amor. Odoyá, Mamãe! O mar é seu lugar.

Por falar em lugar, "El corazón al Sur" (Eladia Blázquez) traz uma interpretação emocionadíssima de Estela (em duo com Soraya) ao cantar seu lugar distante, porque único no mundo - o da própria infância e outros dias felizes -, com o coração mirando ao sul. A lágrima pelas cosas que ya nunca volverán salgaram o rosto. Antes salgá-lo com estas lembranças, que ao som da disputa do tango "Boedo" (Dante Linyera) - dançado por Soraya e Estela em coreografia com Alexandre Caldi - em lancinante abertura da ferida de amor e saudade perdidos no tempo de "Nunca" (Lupicínio Rodrigues).

Después de mil caminos, concluo que samba, MPB e baião no tango são o coração mirando ao Sur, em uma evidente inversão de polos nem tão culturalmente extremos. LiberTango completa 20 anos dessa inversão, e inclusão, pelo diálogo/trânsito múltiplo em grande estilo e parceria com a voz de uma grande intérprete. São 20 anos de quebra de fronteiras, música, poesia e outras bossas. Por mais 20 anos de LiberTango, história e atravessamentos ao sul do cor-ação.


Foto: Cyntia C. Santos

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