domingo, 12 de março de 2017

"Três quartos", a dança da vida e a arte como resistência no amanhecer

Cena: quinta-feira à noite em uma sala de estar. Quinta, não, sexta. Se bem que quinta is the new sexta - aliás, muito melhor até. Você recebe alguns amigos, que trazem outros amigos, e eles tocam violão. What a violão! E aquele dia de trabalho, agitado, renhido, brigado, enfim, termina para lá bem. Foi assim a quinta-feira de estreia de "Três quartos", novo projeto musical de Julia Bosco, Emerson Leal e Gustavo Macacko, na revigorada Da casa da Táta, responsável por grandes noites de música e outros tantos encontros ali, no coração da Gávea. O violão de Leal - também diretor musical do espetáculo - e a guitarra de Macacko criaram o clima perfeito, alentador de fim de noite e, embalados pela voz de uma Julia cada vez mais segura de si e seu aparato vocal - permitindo-se brincar, sorrir e chorar ante o desfile de um repertório de canções autorais, músicas ainda inéditas e releituras -, representaram o respiro necessário e urgente da resistência artística ao iminente naufrágio da cultura de uma diviníssima cidade cujo poder executivo é incapaz de compreender a dimensão simbólica e política, inclusive, dos eventos impulsionadores da própria economia. Afinal, ninguém é obrigado/a a nada.

Por isso, "Cidade dos artistas" (Chico Buarque) inicia falando sobre a efervescência cultural e política de uma cidade apinhada de artistas hoje absortos pelo desmonte que ameaça o caráter ele mesmo resistente - e reexistente - da cultura, mas igualmente combatentes na luta por seu resgate e contínua mutação. A sequência com "Três quartos" (Julia Bosco, Emerson Leal e Gustavo Macacko) aplaca parte das tensões, ou não, listadas acima, e dá verdadeiramente início a este encontro materializado em sonho e tornado reencontro no qual cada uma das três partes se toca mudando o mundo inteiro. Três são as partes do todo múltiplo. O todo são muitas mais. Três são as memórias, e dores, e experiências ali ou além unidas no peito, em uma só respiração. Bosco, Leal e Macacko fizeram o convite e, longe de mero acaso, todas/os se aconchegaram e fizeram no breve momento sua morada.

"Volume" (Ana Clara Horta, Gabriel Pondé, João Bernardo e Miguel Jorge) aumentou o barulho da minha cabeça. A quarta faixa de "Dance com seu inimigo" (Coqueiro Verde, 2016), segundo disco de Bosco, foi reacendida sob o toque do violão de Leal e uma interpretação inundada de amor da boca pra fora. Corpo, ouvido, cabeça e coração pediam um pouco mais da voz "volumática" de Julia em BPM. Esta redatora já é suspeitíssima para falar da magia de um voz e violão, sua particular predileção, mas esta música neste formato, sem programações, 'me socorreu. Foi pensamento novo. "Sugar baby" (Emerson Leal) trouxe talvez sem querer, ou não, à baila uma subliminar discussão sobre uma blondie do hemisfério sul hoje primeira dama de um macho síndico de prédio golpista, cuja juventude fora moeda de troca para a cruel ilusão de um recato e medo a contento do velho. Golpe de sorte e azar de milhões, a descrição dos eventos ou a ligeira referência aí incutida possui(uem), tristemente, total semelhança com a realidade. Fica aí, ou não, a referência, porque a dica é furada.

"Montanha" (Gustavo Macacko e Perez Lisboa) é solidão esperançada. A guitarra de Macacko ambientou o tom soturno da reflexão de quem só queria poder abraçar o mundo e soubesse ver o quão leve você, o mundo, a vida poderiam ser. E serão, caso seja possível viver a esperança. Nós, que não somos sós, saberemos enfim dizê-la. "Cruel" (Sérgio Sampaio) é mais uma crítica à crueldade do sistema e aos falsos dilemas incutidos pela Babel sem beleza e mentirosa que aqui vigora. O amor 'tá quase mudo, a voz também e o destino é bem mais fundo. Com tudo tão mal, menino, é bom ficar de olho aí. Fiquemos logo, por favor, disseram Julia e Macacko, que essa dor não esconde seu papel.

"Culpa de ninguém" (Julia Bosco, Emerson Leal e Gustavo Macacko) é laço necessariamente desfeito para dar espaço a outras/novas emoções, sentidos, prazeres e mesmo dores. E tudo bem. Se a gente fala mais do que escuta, então, não se conhece mais. No fundo, tudo é culpa de ninguém, e antes de fazer mal ao bem durante algum tempo construído como desculpa para raiva, é melhor mudar a luminária de lugar. Parece mais contigo. "Cartas marcadas" (Dona Onete) é quando a raiva persiste. E tudo bem também. Só vou falar com você depois que a chuva passar. Afinal, se as palavras já estão decoradas e a encenação bem ensaiada, não há pressa. O jogo empatou. Quem tropeça na malandragem como você só prova que gente que faz o mal, ou marca negativamente a vida de um alguém geralmente mulher, ainda sofrerá as consequências em igual medida. É só questão de tempo, e eu estou aguardando o meu. "Eu parei de te seguir" (Emerson Leal). Canção de Leal excluída de "Cortejo" (Tratore, 2016), seu último CD, e em paralelo à "Felicidade" (Noel Rosa), é reconciliação. Sofrimento é algo solitário e ninguém sabe a marca deixada no peito, mas a liberdade de tirar você do feed do notícias do saite faces ou outra rede social me faz não enxergar sua falsa felicidade. E falsa felicidade é pior que tristeza: fere muito mais.

"Mulher independente" (Gustavo Macacko, Luis Carlinhos, Mauricio Baia e Tais Alvarenga) é denúncia do sistema machista de aparências infusor de papéis femininos comportamentais e psicológicos até (por vezes) subversivos aos cristalizados que, no fim, funcionam como retroalimentadores do poderio masculinista. Às mulheres só cabe sobreviver e tornar sua condição minimamente suportável. A nós só cabe tentar viver e se mutilar a cada novo dia de vida, ou sobrevida. Continuaremos teimando. A "Ventania" (Mariana Volker e Paula Santa Rosa) de mulher, de Mariana Volker, participação especial convidada da noite, deu novo colorido aos cantinhos destes três quartos. Ah, se cada dor de um fim de amor poetizasse a beleza de um sentimento forte assim duradouro, porque verdadeiro, mesmo findo... Ah, se cada dor se traduzisse assim tão belamente como a chuva de mar que lava a amada/o amado de si para transformar em ar, ou seja, em algo, alguém e sentir perenes... Ah, se cada dor fosse vento, mas não é. Só este desejo levantado por Mariana foi um doce abraço. E lágrima em cor.

O solo de Volker em "Someblue" (Graça Motta e Victor Dornelles) é o tom blue de um doloroso blues que traduz o impossível do amor, e amar, a olho nu. O rio de um janeiro a dezembro de amor inteiro atravessa azul e morno o coração, e desfaz o nó que pode ser amar quem se ama apenas com o olhar, poderoso laço entre dois amantes/duas amantes. O violão de Mariana é blue, então, não se podia pensar. Era sentir a intensidade do possível ali entre todas/todos desenrolado, quase invisível. Foi lindo.

Outra canção entoada por esta grandiosa artista ao violão foi "Ultraleve" (Victor Dornelles), coisa de braços ao vento da gente aventureira como o ar, sem direção, repouso. Leve. Entrega ao momento por inteiro. Aventureira de si, mas peito aberto que sempre retorna ao mesmo lugar, doce lugar de poetas delirantes, o janeiro das/os amantes. Novamente, brisa.

"Na frente da tela" (Emerson Leal), o quarteto se fala por uma janela e fala dela, de alguém, para a solidão poder desaparecer. A noite cai, e a imaginação corre solta na conversa de quem se vê em frente à tela. Em versos ou prosa, o encanto de um encontro mesmo cibernético, espada de Dâmocles destes tempos, permanece. Quando o navio da dita viagem, entretanto, aportar, e o mastro se enterrar finalmente em terra firme, vão se fazer valer as tais "Coisas do coração" (Raul Seixas) que só a experiência material do amor pode proporcionar. Paixão e nada mais, ou tudo mais, a resposta exata às perguntas inevitavelmente feitas por amantes em seu amor serão nós nunca desfeitos, só abraços sufocantes, porque envolventes. Coisa de cor-ação. Essa é a mulher que te quer e "Pra gozar" (Julia Bosco e Emerson Leal), deixe-a fingir que é tudo. Nada disso é real, sobretudo a ilusão mantida, mas sem cena de choro. São ecos de um destino de amor e amar incerto de um exilado vermelho sul-americano, contracultura x ditadura e Tio Sam anarquista. "66" (Gustavo Macacko e Tchong) expõe a lógica de um sentimento guerra fria, poema de amor bolchevique Lennon Yoko escrito em inglês, gauchevista, mas americanizado, consenso e contradição, dissenso e acordo. Ou desacordo. Chaplin e Chapolin, Jimi no Vietnã e Mohamed ouvindo rock em Woodstock. Total alvoroço, com lenço e sem documento.

O descompasso de um lindo delírio como este do amor leva além. Ou ali, perto do caos. Caos e equilíbrio são linha tênue um do outro. "O caos do equilíbrio" (Gustavo Macacko) está no aprender a dividir e se permitir voar cego nesta imensidão, ou não se deixar ser seguida/o pelos fantasmas criados na desolação ou medo. A ordem é ir ao infinito. "Vai que dá certo" (Emerson Leal)? Vai que te aceitam com os defeitos? Vai que dão jeito na sua dor? Vai que! Deixa. Segue. Se ainda assim, você que não 'tá, ou não é do seu nível, agrado ou questão semelhante, mil perdões por não (querer) ver tal show imperdível. "O famoso quem?! e a orquestra invisível!" (Gustavo Macacko e Emerson Leal) sentencia sobre quem é assunto de nada, porque faz a linha cool impassível, ou impossível de conviver, ou amar, sabe-se lá e, mesmo sabendo das feridas, e males, e solidão trazidos, a si e às outras/aos outros, precisa manter as aparências. Cansativo.

"Dance com seu inimigo" (Julia Bosco, Gustavo Macacko e Donatinho) é o conselho final de Bosco, Leal e Macacko para tamanho desperdício de energia vital. Convoque medos, angústias, mágoas e outros dilemas para dançar e falhe aquele plano infalível de nada prazeroso ou odioso de amar. Deixe o silêncio gritar! Aliás, foi o grito de um silêncio atordoante, ensurdecedor, que transformou a noite de canções, quartos e memórias em um baile de reencenação da vida e escudo de peito aberto para resistir aos obscurantismos e outros golpes quando de outro alvorecer - já com início na sexta imediata. "Três quartos" é arte, poesia, cultura e a resistência no que há de belo, político e simbólico. Vida longa!

AVISO: as apresentações serão mensais, e ocorrerão durante todas às primeiras quintas-feiras de cada mês. O próximo encontro está marcado para o dia 6 de abril. Se você fosse, eu iria.


Foto: Donatinho

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