"A pele", simultaneamente disponibilizada em videoclipe no canal YouTube da artista, musica em rap os versos traduzidos como corpo, fundo e medo ocidentais de uma pele que é a do mundo. A pele muda, vária e viva-morta continuamente descrita ao longo do poema testemunha a passagem do tempo e expressões remanescentes de dores - calos de caminho -, autoflagelos e histórias por que o(s) corpo(s) é/são marcado(s). Tudo só vale a pena se cada uma das buscas assinaladas em cada marca valer a própria pele.
"Velho piano" é soturnidade. Os recursos sonoros empregados para simular, ou melhor, ambientar o desafinar das teclas de um velho piano sob a água escura verdadeiramente afogam quem ouve no concerto dado por um homem tocando há muitos anos no fundo do mar. Tal como o vídeo reproduzido junto ao poema-canção durante o show, "Velho piano" impressiona pela riqueza de acordes minuciosamente aí conjugados. Ana comanda o toque de todos os instrumentos e programações da faixa.
"Qual é?" é crônica googleísta da pós-modernidade ateia imersa em abismos, cinismos, babaquices, fama e suas artificialidades fetichizadas. O líquido sal caído do rosto em meio à fatalidade da vez é ora pranto de amores perdidos no banco de sampler, ora banalidade de uma criatura maldosa do próprio buffer. A melodia indefinida é flexível às diversas facetas das personas assumidas, ou presumidas, por Ana no poema-relato, e dá conta, sonoramente falando, das realidades, traumas, enganos, lembranças, pedaços de vida de quem, hoje, é sua mulher, seu mito, o que absolutamente quiser. "Qual é?" é para quem pode. Junto a "Velho piano", é uma das melhores canções do EP.
"SOM/Ruído branco" é seu poema homônimo declamado e ricamente assinalado pelos diversos sons dos instrumentos descritos entre os versos e suas respectivas intenções descritas, constituindo de fato o espectro sonoro plural traduzido pelo ruído branco em âmbito musical/melódico.
Os novos caminhos trilhados por Ana neste momento dos seus quase 18 anos de biodiscografia não foram casualmente reunidos na brevidade de um registro fonográfico como um EP. A mensagem, curta e incisiva, precisava ser única. E rápida: porque nova é a compreensão da palavra enquanto objeto, e sujeito, do próprio fazer literário, outros também serão os produtos desta catarse, ou catarses. O momento de Ana é este, e a melhor recomendação é saboreá-lo junto a ela. Ou não, caso a identificação não tenha se dado. Ninguém é obrigada/o a nada, mas a mineira não vai mudar sua postura para agradar ninguém.
Foto: reprodução/capa do EP "Ruído branco - Poesias musicadas"
Ana Carolina em foto de Nelson Faria
Mais uma vez brilhante prosa sobre uma artista capaz de se inventar, de ousar, de quebrar os seus tabus e a imagem que os outros têm dela. É resiliência, persistência, tempo de mudança que pode não agradar a muitos mas que a muitos diz respeito. E é bom ler críticas despojadas e bem observadas. Parabéns!
ResponderExcluirGrata sou eu, novamente, pela acolhida, Margarida! Mais que persistência, trata-se da resistência desta mulher multiartista em meio (masculinista e heteronormativo) hostil. Sigamos.
ResponderExcluir👏👏👏 é isso aí. Amei.
ResponderExcluirObrigada pela acolhida, querida!
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