domingo, 12 de março de 2017

Ana Carolina, o EP "Ruído branco" e o que se quer ser, ou falar, porque o momento é este

Extraídas do primeiro lançamento editorial e correspondente show-livro homônimo, as faixas deste EP "Ruído branco - Poesias musicadas", o primeiro da carreira de Ana Carolina lançado em 10 de março último - uma semana antes do anunciado -, compreendem as quatro poesias musicadas escritas pela cantora, compositora, multi-instrumentista e escritora mineira em "Ruído branco" (Planeta, 2016). Assim como o próprio livro, os versos desfilados em canções tão distintas quanto são as melodias ali embaladas sinalizam os ares e anseios da viagem músico-poético-literária então inédita de Ana por novas paisagens em sua trajetória autoral.

"A pele", simultaneamente disponibilizada em videoclipe no canal YouTube da artista, musica em rap os versos traduzidos como corpo, fundo e medo ocidentais de uma pele que é a do mundo. A pele muda, vária e viva-morta continuamente descrita ao longo do poema testemunha a passagem do tempo e expressões remanescentes de dores - calos de caminho -, autoflagelos e histórias por que o(s) corpo(s) é/são marcado(s). Tudo só vale a pena se cada uma das buscas assinaladas em cada marca valer a própria pele.

"Velho piano" é soturnidade. Os recursos sonoros empregados para simular, ou melhor, ambientar o desafinar das teclas de um velho piano sob a água escura verdadeiramente afogam quem ouve no concerto dado por um homem tocando há muitos anos no fundo do mar. Tal como o vídeo reproduzido junto ao poema-canção durante o show, "Velho piano" impressiona pela riqueza de acordes minuciosamente aí conjugados. Ana comanda o toque de todos os instrumentos e programações da faixa.

"Qual é?" é crônica googleísta da pós-modernidade ateia imersa em abismos, cinismos, babaquices, fama e suas artificialidades fetichizadas. O líquido sal caído do rosto em meio à fatalidade da vez é ora pranto de amores perdidos no banco de sampler, ora banalidade de uma criatura maldosa do próprio buffer. A melodia indefinida é flexível às diversas facetas das personas assumidas, ou presumidas, por Ana no poema-relato, e dá conta, sonoramente falando, das realidades, traumas, enganos, lembranças, pedaços de vida de quem, hoje, é sua mulher, seu mito, o que absolutamente quiser. "Qual é?" é para quem pode. Junto a "Velho piano", é uma das melhores canções do EP.

"SOM/Ruído branco" é seu poema homônimo declamado e ricamente assinalado pelos diversos sons dos instrumentos descritos entre os versos e suas respectivas intenções descritas, constituindo de fato o espectro sonoro plural traduzido pelo ruído branco em âmbito musical/melódico.

Os novos caminhos trilhados por Ana neste momento dos seus quase 18 anos de biodiscografia não foram casualmente reunidos na brevidade de um registro fonográfico como um EP. A mensagem, curta e incisiva, precisava ser única. E rápida: porque nova é a compreensão da palavra enquanto objeto, e sujeito, do próprio fazer literário, outros também serão os produtos desta catarse, ou catarses. O momento de Ana é este, e a melhor recomendação é saboreá-lo junto a ela. Ou não, caso a identificação não tenha se dado. Ninguém é obrigada/o a nada, mas a mineira não vai mudar sua postura para agradar ninguém.


Foto: reprodução/capa do EP "Ruído branco - Poesias musicadas"
Ana Carolina em foto de Nelson Faria

4 comentários:

  1. Mais uma vez brilhante prosa sobre uma artista capaz de se inventar, de ousar, de quebrar os seus tabus e a imagem que os outros têm dela. É resiliência, persistência, tempo de mudança que pode não agradar a muitos mas que a muitos diz respeito. E é bom ler críticas despojadas e bem observadas. Parabéns!

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  2. Grata sou eu, novamente, pela acolhida, Margarida! Mais que persistência, trata-se da resistência desta mulher multiartista em meio (masculinista e heteronormativo) hostil. Sigamos.

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