sexta-feira, 17 de junho de 2016

A narrativa eletrônico-futurística de Zambê como trânsito e resistência do diálogo entre brasilidades no choque entreculturas

Futurismo retrô. Tecnologia a serviço do futuro, incerto futuro. Demasiado futuro, porque entregue à humanidade. Humanidade perdida entre golpes e fascismos, mas prestes a ser salva pela arte. Foi com esta mensagem inicial, no palco vivificada por Ronaldo Tapajós em inserção de vídeo, que Donatinho abriu o show de seu álbum solo de estreia "Zambê" (Pimba/Dubas Música, 2015), na noite de ontem, no renovado Teatro Rival. A proposta de encontro/fusão do eletrônico e outras musicalidades regionais brasileiras revela-se logo no formato futurologicamente escolhido: em cena, apenas Donatinho e seus músicos. Na tela projetada ao fundo nem tão fundo do palco, seus parceiros e parceiras desfilam em videoclipes previamente gravados (sob produção do próprio Donatinho) as canções do repertório escolhido para a performance, baseada majoritariamente no trabalho de estúdio. A dinâmica é tal qual uma peça teatral: sem interrupções para diálogo com o público, a história é a de um super-herói vindo de um mundo no futuro sem cultura que, através da música, ou arte em geral, pretende assim resgatá-la. Este resgate, por sua vez, intersecciona house, electro, trip-hop, hip-hop, dub e vertentes outras de sintetizadores, samplers, piano rhodes, baixo synth e uma série de programações eletrônicas ao samba, choro, moda de viola caipira, ponto de candomblé, canto indígena e carimbó, formando um híbrido futurobricoleur de valorização da diversidade rítmico-musical brasílica, no lugar da enfadonha eurofilia da classe média branca centrista destas terras.

"Ladeira do samba" (Donatinho e Maria Joana) fez a majestade do samba invadir a cidade e tudo balançou logo no início do show. Piano rhodes e samba, ronco da cuíca, a majestade do ritmo-símbolo do Rio e da resistência cultural (negra) deu o tom high.

"Janaína" (Donatinho e Rita Bennedito) é axé. Olodumaré chamou Iansã, Xangô, Iemanjá e as deidades do panteão iorubá no ijexá girante e carregado de axé a Ela, Dona dos mares. Saravá! Ponto de candomblé já é algo de arrepiar, mas a cada intersecção, o ritmo e energia aí presentes aprofundam ainda mais a conexão com o sagrado em cada um(a). Viva esta herança afrobrasileira!

"Ladrão de alma" (Donatinho, Fernando Caneca e Totonho Cabra), com repente audiovisual de Totonho Cabra, é resistência. É saudação à história e luta de mulheres, seu protagonismo e visibilidade. O cabra incomodado com a Beauvoir, mulher do Vavá, que se pôs a escrever poesia para equilibrar a flora intestinal e foi saudada pela mulherada da novena é o mesmo jagunço de internet, peste!, que sumiu quando viu a filipeta promovendo a madame presidente do Brasil. Se a zoeira se findou, eu não sei, mas a vassoura das bruxas voou alto e ainda aplaudiu a tambor da crioula. Tudo isso foi em Juazeiro. Não será no Brasil também, não?

"Choro da nova escola" (Donatinho, Felipe Pinaud e Akira Presidente) tem Akira Presidente 'rappeando' outra resistência no ritmo da rapaziada guerreira da perifa. Pode a preta chamar, o céu desabar, o galo cantar, a chapa esquentar, mas todo mundo só vai voltar quando o samba acabar e a escola passar. Sob a bênção da velha guarda, experiência dos desfiles de outros carnavais e da madrinha, bela rainha, essa galera segue, com fé no mestre, ou mestres, de cabeça erguida na marcha da vida.

"Dança dos urubus" (Donatinho, Kassin e Dona Onete) é carimbó, é Pará, é o norte vivo do Brasil na voz de Dona Onete dançando e cantando com os urubus, ao seu redor. Há nada de estranho, não. É ritmo, swingue e transa. Ou transe no ritual de dança/(osso)conexão.

"Discurso independente" (Donatinho e Tamy) é ser feliz da vida. É o que contagia ver você assim, jogando charme, sambando num balanço diferente, gargalhando a vida. Gostoso de sentir e ouvir esse discurso independente. Guardarei feliz essa noite. Ilumina.

A sequência eletronicosambalançante instrumental que encerra "Zambê", "O sopro" (Donatinho e Márcio Montarroyos), "Ponteio afiado", "Vidas melhores" (Donatinho e Plínio Profeta), esta entremeada pelo discurso comovente de Dona Chica, e "Boa tarde, povo" vem só confirmar a fecundidade do trânsito de culturas, histórias, trajetórias, influências, lutas, resistências, passagens e ritmos entre as brasilidades pulsantes no país, sob a chave musical que for. Em igualdade com os personagens também atores da cena proposta por Donatinho no palco, quebrando hierarquias, narrativizando pluralidades e pluralizando narrativas, "Zambê" foge do senso comum e propõe viagem futurística necessária àquelas/es que resistem às iniquidades dos homens usando a cultura como arma, sangue e flor de luta.  



Foto: Wallace Gonçalves




Nenhum comentário:

Postar um comentário