terça-feira, 22 de agosto de 2017

"Primavera nos dentes" e o delírio sem ter febre de vingança do sangue latino

Saber que se existe como se é é força. A consciência desta coragem não vacila, mesmo eventualmente derrotada por circunstâncias políticas adversas. A subjetividade decepada inventa a própria mola que (r)existe. Entre seus dentes, manchados de sangue ao rasgar da carne dos inimigos de sua liberdade, uma primavera. É com a esperança perdida, ou novamente achada na linha do horizonte, que Charles Gavin convida Duda Brack, Felipe Ventura, Paulo Rafael e Pedro Coelho para "Primavera nos dentes", projeto idealizado pelo baterista e pesquisador musical que revive parte do repertório de grande sucesso dos álbuns "Secos e molhados I" (1973) e "Secos e molhados II" (1974), ambos do legendário trio homônimo formado por Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso nos anos 1970. O passeio pela história de onze dos principais hits imortalizados pelo grupo mostra bem mais que a evolução estilístico-musical ocorrida até esta primeira década do segundo milênio, vislumbrável, aliás, nos belíssimos novos arranjos para as canções originais; a voz de Duda Brack anuncia a longevidade das descrenças e principais temores de uma geração assolada pela retração democrática de um regime autoritário em meio às atuais dúvidas de outra geração cuja juventude agoniza ante novo lento genocídio.

Se a desconfiança de viver com a possibilidade das gentes ao redor como "O hierofante" (Oswald de Andrade, 1937, e João Ricardo) quisera prefaciar à autópsia do Poeta da peça de Andrade (1890-1954), "Delírio" (Gerson Conrad e Paulinho Mendonça) evoca o coro dos desafinados a esperar nada deste infame encontro. Da fonte do passado não emergirá a sede do futuro, e quem delira sem ter febre é parceiro das verdades. À desconfiança, claro. "Angústia" (João Apolinário e João Ricardo) lembra o tremendo esforço de ser no retorno à origem das coisas. Não se pode ficar colado à natureza como uma estampa, diz a canção, mas representá-la no desenho ou saltar assim sem proteção à vida, tal navalha no ar, é agonizar na tentativa. Por outro lado, "Primavera nos dentes" (João Apolinário e João Ricardo) insta a resistência. Quem já é perdido em ser e viver a si nunca desespera, e o centro da própria engrenagem é a primavera-força que se segura entre os dentes. Luta quem sabe existir, e a vida de uma existência miserável trazida em "O patrão nosso de cada dia" (João Ricardo) clama por amor. Clama por verdade, a de todo mundo, lá no fundo azul, conforme "O vira" (João Ricardo e Luhli) faz diretamente da noite da floresta-Brasil selvagem.

"O doce e o amargo" (João Ricardo e Paulinho Mendonça) faz sugar o possível do impossível; desta impossibilidade faz brotar fogo e alma da terra morta de sangue dos corpos cativos e vilipendiados das mulheres escravizadas, tristes do país. Seu "Sangue latino" (João Ricardo e Paulinho Mendonça) é vento do norte que tempesteia do sul, rompe tratados, trai ritos e é lança de gemido no espaço. Sua vida, todos mortos. É doce a vingança. "Rosa de Hiroshima" (Vinícius de Moraes, 1954, e Gerson Conrad) é o horror destas rotas alteradas, antirrosas sem rosa, sem perfume, sem nada. Estupro não tem beleza: meninas, mulheres sangrando na boca, no meio das pernas e tomando cacete de branco dominador está longe de ser miscigenatório. En el "Tercer mundo" (Julio Cortázar, 1972, e João Ricardo) global da América Latina, nadie danzó su giro. Do lado de cá do mundo, os chapoteadores da História serão sempre véspera de si mesmos, nunca amanhã ou realidade, porque mortos estarão. Suas elites jamais permitirão qualquer emergência. A "Fala" (João Ricardo e Luhli) não se escuta. Muito a dizer, pouca disposição em ouvir. Ou nenhuma. Vamos responder. Juraremos verdade e levantaremos as filhas e filhos esquecidos deste continente sangrado/desgraçado pelos velhos saqueadores do norte, todos criaturas bastardas, segundos, terceiros herdeiros de seu mundo, demasiado mundo de nada. Já o fazemos. Aprendemos a forjar a primavera nos dentes. Nosso gemido ainda será seu grito de dor. Vingaremos o sangue latino. Sem desespero. Eles farão a nossa vez. Sabemo-nos existentes. Não nos calarão. Não mais. Nunca mais.


Arte de capa: Stephan Gesell

Nenhum comentário:

Postar um comentário