terça-feira, 25 de outubro de 2016

Ana Carolina, "SOLO" e a primeira vez que nunca é última

Certa máxima diz que quando se chega ao fim, começa-se a pensar no início. Quando este fim não é necessariamente fim, mas certo ponto da trajetória, auge ou pós-auge - se é que é possível considerá-lo, dado o movimento cíclico de ascensão, queda, ou ligeira queda, e reascensão -, o caminho de volta ao começo é, em verdade, reinício da busca enquanto desejo irrealizado. E busca é (sempre) caminho. Caminho de encontro, desencontro e reencontro, desconforto, inquietação, apego ao novo e desapego do velho como fórmula de ação, próximo movimento ou até pausa. O início, ao contrário do que parece, requer, para além do enfrentamento consigo e o outro em toda crueza, apenas o som do silêncio (traído) da voz e um violão. É nesta viagem de busca da voz como jornada de reinício, meio e fim em si mesma - para novos passos -, que Ana Carolina mergulha em "SOLO", show de voz e violão que inundou neste último sábado (22) o Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília. Estreada em novembro de 2015 na cidade de Fortaleza (CE), "SOLO" congrega hoje parte dos sucessos de carreira da mineira e releituras de clássicos do cancioneiro nacional - em palavras da própria, "aquelas canções que eu sempre cantei e toquei em casa" -, além da produção autoral mais contemporânea, mesclado a demais interpretações inseridas em outro espetáculo de Ana em cartaz, intitulado "Grandes sucessos".

A noite do dia 22 de outubro na capital federal (do governo golpista Temer) iniciou-se sob o ruído branco do som dos #áudiosmisteriososAC e #ruídobrancoAC, agora diariamente lançados na web como estratégia para lá de certeira, e criativa - diga-se de passagem -, da campanha de divulgação do novo projeto da cantautora, um livro de poemas, fotos, pinturas inéditas e memórias de Ana, com lançamento previsto para dezembro deste ano (http://bit.ly/2euP4JM). O soar deste sino anunciou o não-medo de finalmente ser e saber quem se é de "Eu não sei quase nada do mar" (Ana Carolina e Jorge Vercillo) para afinar a discussão. A crítica política, pautada em outros trabalhos da artista, volta à cena em "Qual é?" (Ana Carolina), composição inédita antecedida por discurso contra o enfim cassado deputado federal e ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha. As marés muito altas de lucros omissos e despolitização proposital googleísta de quem vota contra o amor em sua pluralidade - babaquice que passa de mané-macho pra outro mané-macho - são arrebatadas pela persona que é quem quiser em seu nosso abismo, cinismo e líquido sal. Sou eu meu mito (e desilusão), minha mulher. Repito, sou eu quem bem eu quiser.

Estabelecida a conexão com o contexto político e sociocultural maior, "Cecília" (Chico Buarque) vem lembrar a forte admiração de Ana pela poética buarqueana em sua forte orquestra melódica e doce sussurro de amor respirado no silente desejo da palavra em nexo bruto, porque ardente. A exaltação à musa, curiosamente distante - portanto, fruto de adoração por vezes vazia -, revela sua face na procura dos lábios e aquela presença na saudade ressentida de "Canção em silêncio" (Zé Manoel), um não-poema de amor com as portas já trancadas. A mulher já chorou até demais por quem fingiu amá-la. "Combustível" (Ana Carolina e Edu Krieger) confirma que a dolorosa despedida desta obsessão fanática, suicida é para encontrar o amor, que não é dor, em paz, ele mesmo ponto de partida e chegada. "Pra rua me levar" (Ana Carolina e Antonio Villeroy) é o depois do árduo caminho da dor. O rio por onde a vida passa é cheio de pedras, e as águas que nele vertem nunca são as mesmas. Sem mais precipitações e aflitiva espera, o silêncio é a escuta que basta para início do novo caminho de promessas a se cumprir. Mas é foda, como o texto de Elisa Lucinda declamado, "Dafodavindes", categoriza. Este um que adentra o outro e habita um mundo de amor, paixão ou puro sexo/troca é foda. Este princípio, bendita palavra cerceada pela escolástica racional, é a foda. O princípio é amor e amar sem limites. O princípio é a história de "Um amor puro" (Djavan) que adora em tudo, tudo, e quer (amar) mais que tudo, tudo. A força que isso tem, sua, do outro/outra e mais ninguém, é foda.

Amor puro, tudo, tudo, é um quebra-nariz na cara do juiz, ou juízes. Essa "Linha de passe" (João Bosco, Paulo Emílio e Aldir Blanc) é água de benzê, confusão e um toma-lá-da-cá de samba que, para curar, só violação de som bordão bordando, ou rebordando, outro som, o do coração que se sente ao toque. Este som, mais uma vez, não é para qualquer fogo, mão ou ombro. Se queima, é porque tem de queimar, e queima porque se ama. "O que é que há" (Fábio Jr. e Sérgio Sá) é angústia de olhar perdido no outro para voltar a si mesma/o. Nada de arrancar espaços vazios ou ansiedade. Acalme-se. Acolha-se. Ocupe-se. Preencha-se você. Ame o que tem pra se amar e queira amar. Isso é o que há.

"A canção", esta, "tocou na hora errada" (Ana Carolina), ou na hora mais certa. De você eu realmente sei nada, porque não há o que saber. Eu sei de mim, aliás, tento. E muito. Com ou sem chuva, é tudo desigual, e as cartas com letras de forma se esmaecem no tempo. A porta sempre esteve aberta para quem nunca quis adentrá-la, como "Vai" (Simone Saback) recorda. Você sabe voar, se quiser, de voltar pra mim. "Amor perfeito" (Lincoln Olivetti, Michael Sullivan, Paulo Massadas e Robson Jorge) é o que sei e vou viver comigo, com ou sem você. Vou saber me acostumar. Meu olhar eu entendo e me faço entender. Peço "Nada pra mim" (John Ulhôa). Tive você na mão. Agora, tenho só essa canção morta no tempo, mas viva em gostar de mim.

Amar é esse deserto e todos os temores do "Oceano" de Djavan - porque uma jornada de encontro ao outro em terras desconhecidas do coração - que sabe voltar para si, se for mesmo amor. Deságua-se no outro, porque em si mesmo, e esquece-se que amar é dor. Se é amor, não há dor. Diante disso, "Hoje" (Jefferson Junior e Umberto Tavares), eu tenho a proposta de me ver segura, com a intenção de ter você pra mim sem ter, porque ninguém é posse de ninguém, ou objeto de consumo. Eu quero é te pegar gostoso. E ponto. Afinal, "O meu sangue ferve por você" (J. Arel, Caude Carrere e M. Pancol. Versão em português de Serafim Costa Almeida).

O sangue ferve, e o "Coração" é "selvagem" (Belchior). Eu quero o corpo, meu, seu; quero uni-los em oração e verso. Este coração, cuidado, é frágil. O meu som, a minha fúria e essa pressa de viver, esse jeito de deixar sempre de lado a certeza é para arriscar tudo de novo com paixão depois de um não-amor traído. Ando caminho errado pela simples alegria de ser, de novo, comigo. Ninguém jamais te amou como eu, lembra "Um dia, um adeus" (Guilherme Arantes). Perdoo a mim por tê-lo abraçado, beijado e 'te sentido sem nada em troca, mesmo amor. Amar quem te ama é o mínimo que se pode oferecer pela entrega real do outro. Ainda assim, eu me perdoo.

Pela poesia dos "Nomes de favela" (Paulo César Pinheiro), Ana lembra que ninguém faz mais jura de amor no (morro do) Juramento; nem mesmo aquele menino de Mangueira pega mais manga ao pé da árvore. Em outra crítica social, a lembrança da dura realidade da gente preta e pobre da favela diariamente morta pelo Estado dá lugar à súplica: se as coisas por lá não mudarem, então, seus nomes terão de mudar, porque já não fazem mais sentido. A vida de morte, ou morte-vida, não faz sentido.

"Erva venenosa" (Jerry Leiber e Mike Stoller. Versão em português: Rita Lee e Roberta Tiepo) é a que incomoda. Anjo mau - mulher não tem de ser boa ou doce para agradar -, abre bem a boca, porta-se, sim, como louca, porque normal é que é doença (alienante), e tem um grito para lá de alto. Se ser quem se é é maldade ou vileza, bom, então, que se seja má. Nem toda mulher gosta de "Rosas" (Antonio Villeroy). Veja isso, ou a mim, do jeito que quiser. Não faço esforço para agradar, ou contrariar. De tantas mil maneiras que eu posso ser, uma delas há de agradar. Caso não, só lamento, porque aprendi a me virar sozinha. 'Me criei na rua da dor e da vida. Não mudo minha postura. A "Garganta" (Antonio Villeroy) pode até estranhar, mas mesmo sem te ver eu tenho desejo doido de gritar. E eu grito. Há quem não saiba dizer a verdade. "É isso aí" ('The blower's daughter', Damien Rice. Versão: Ana Carolina) encerra como a gente achou que ia ser. Ou não. Na verdade, não mesmo. Quando se acha que Ana Carolina se encerra em si mesma, descobre-se sempre neste seu verso-poesia-canção-atravessamento vastos mundos, ária maior para idealistas, barulho de concha para românticas/os e o som de garganta-história-destemor-(r)existência de mulher, grito rouco, histriônico por viver, único, porque coração. Tudo, com a emoção de como se fosse a primeira vez.


Foto: Paula Brito

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