segunda-feira, 20 de junho de 2016

O pacto profano da zona sagrada de Dio&Baco e o atravessamento que é. Ou foi

Pacto profano com o que é da zona. Permissão sagrada para o alvoroço. Viver e perten(s)er ao que se é, no fio da navalha, estigma habit(u)ado de si. Completude em eterno processo de completamento. Loucura é ação política. Devir da resistência. O ritual transedelirante proposto por Suely Mesquita e Eugenio Dale, ou Dio&Baco, em show apresentado na última sexta-feira (17) durante sua participação nos "Encontros com o compositor carioca" é realidade onde "tudo poder ser". Aliás, tudo é visto ali. O início com "PACTOCOMBACO" (Eugenio Dale) é balacobaco. Para cada sorriso saído do buraco, avisa Dale, tem de ter felicidade. Faça o que der na telha. Vire o barco. Dionísio sabe o caminho. Ou não. Se fizer o contrato, cumpra-o. Tenha coragem para largar o que lhe enche o saco. Ah, sei lá, deve ser a idade.

"Zona e progresso" (Suely Mesquita, Pedro Luís e Arícia Mess) é mais zona que progresso. Talvez essa zona do zen genial, lugar do bem e do mal, onde tudo é ou pode vir a ser, seja o progresso, vento dispersor, criação, farol em meio à escuridão. Tudo pode ser. E é. Normatizar é adaptar, e a zona, imortal, é bagunça inquietante, potência revolucionária.

"Anjo G" (Eugenio Dale e Suely Mesquita) é trânsito. A vivência plena da sexualidade, o direito ao prazer/corpo e a livre expressão (sem recalcamentos) da subjetividade tornam-me quem sou e o que desejo ser ante os encontros, descobertas, paixões, urgências, tensões e tesões, recolhidos ou não. Lua e sol, colombina e arlequim, sou meu começo, meu fim e, claro, meu ponto G.

"Sem capotta" (Suely Mesquita e Eugenio Dale) é liberdade. Estar nu(a) diante das coisas pode ser um horror, como quereria Clarice Lispector, mas só de deixar o carro solto, pegar o bonde, a onda, fingir que se esconde e enxergar o que há (por) dentro é ser feliz como Nelson Motta. Ou chorar na final da Copa. Liberdade é não ter medo, já diria Nina Simone.

"A vela e a chama" (Suely Mesquita e Eugenio Dale) é atravessamento. Se a luz não se faz, é o fogo que queima e, ao queimar, quer sempre mais. Teima. Ser mulher é estar só e, na névoa, só a chama da vela em nós acesa pode levar a outro lugar. A todo lugar. O peito arde, e o risco é incendiário. O amor vai me iluminar. Eu brilho, porque queimo. E ardo. E sangro. Firo e sou ferida, no fio, no frio e no pavio.

"Bora" (Eugenio Dale) é despedida. Ou chegada. Para partir, ser e sonhar, basta ir pra longe, jogar a alma no mar sem medo ou segredo. Jogar mais fundo, sempre mais fundo. É boa a hora. A hora é o agora.

"Saudade, saudade" (Suely Mesquita e Eugenio Dale) é presença, um estar que não cessa. Saudade é fome, é guardar a metade, temperar o sabor do tempo passando no próprio tempo e na pele, é renascer. É verdade que tudo vai embora, e daqui e do agora já se sente saudade. A hora lembra o tempo que já se perdeu, ou ganhou, mas esta saudade é norte, é sorte, é guia. Sonho. E por ser sonho, a gente segue (n)a estrada.

"Animal" (Suely Mesquita e Pedro Luís) é o sangue pensando e sendo e transbordando e inchando lábios, nós, seus sábios, e a vida. Coisa ávida, atávica, e nunca impávida, "Animal" é rio que se vive na pele. Nunca se contenta.  

"Cortina de fumaça" (Suely Mesquita e Eugenio Dale) é da desilusão. Tanto eu saltei e colori o amor por você que caí, descolori, desbotei, atrasei, marquei e desmarquei, nada tem calor. Ninguém quer mais saber o que sonho e aonde vou. Eu só vou, e não sonho mais. A sua taça cai, mas não quebra, você escorrega e me leva, eu digo sim e você fim. Meu coração balança e é animalizado. Não dá mais. Passa, disfarça, joga cortina de fumaça e não faz isso passar. E a droga do cigarro apagou.

Iansão (Hamilton Vaz Pereira e Péricles Cavalcanti), única canção que não é fruto dos atravessamentos e parceria de Mesquita e Dale, é tributo ao deus Asdrúbal, do trombone, para com a altura deste som chegar aos céus e pegar os raios, crescer sem medo e fazer o vento trabalhar para mim. Se eles caem na minha cabeça, nada melhor do que fazê-los me escutarem e os ruídos da minha cabeça, não?

"Até que chova dinheiro" (Suely Mesquita e Eugenio Dale) é sobre ir com calma, mas sempre perseverante. Voe ao acaso, ignore a gravidade, ria, cante no chuveiro para sair de alma levada e, assim, a maré do amor, da sorte e das compatibilidades, sobrevinda no momento correto, fará chover desejo, vontade e dinheiro à vontade. Aliás, que chova forte!

De repente tudo acaba, embora nada nunca termine. "De repente te amo" (Suely Mesquita e Eugenio Dale) encerra sendo assim do nada uma mão beijada, um jeito macio, o silêncio nada ruidoso de um pio, just a glance. O lance é correr algum perigo, dizer o que não se diz e ir até o fim. Faz parte do plano nada plano do caminho flertar com a vida e transar o viver. A experiência ali-além-delirante de Dio&Baco alerta para a necessidade do savoir vivre, porque ninguém é só de ferro ou dor. A gente cai e se machuca de verdade, mas também grita sim ao risco, ao medo, à coragem e ao desconhecido para ser feliz - o que quer que isso signifique.


Foto: Cyntia C. Santos

Nenhum comentário:

Postar um comentário