terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O som do "Ruído branco" de Ana Carolina, e a persona-menina-mulher que jamais se viu

O show-livro nasceu. Ou o show que nasceu de um livro. Ou um sonho daqueles outrora inconcretizáveis tornou-se, enfim, realidade. Ocorrida durante a última sexta-feira, dia 27 de janeiro, no Teatro Bradesco, a estreia de "Ruído branco", espetáculo baseado na primeira incursão literária homônima de Ana Carolina - a mineira tantas e todas mulheres artistas em uma só é também a diretora e roteirista musical da referida empreitada (o roteiro é igualmente assinado pelo pesquisador musical Rodrigo Faour) -, marca um renascer. "Ruído" é choro encruado, sentimento atravessado de pele no peito. É o peito pulsante de dor, companheira solitária e acompanhada de Ana em sua história, agora reconciliada com um passado de silêncios e silenciamento, outro sentido - este inteiramente novo -, som, e silêncio de novo. O canto passional por que a mineira é conhecida encontra materialidade. E ruído. Ruído de grito, o tal choro encruado, nu. "Ruído branco" é Ana Carolina nua como antes não se vira, ou melhor, nunca então se permitira ser vista, deparada com a dor da própria travessia de si mesma no outro, com o choque/embate do encontro, seus medos, excessos, ausências e presenças. A palavra de Ana, antes inscrita na coisacanção narrativa então universal e, portanto, distanciada dos próprios acontecimentos e dos de seu interlocutor mais imediato, tem agora a força do caos arrebatador e não menos generativo de uma interioridade ruidosa revelada no mais profundo dos atravessamentos. Tudo em estado de pele.

O percurso da trajetória de Ana pela história de sua vida e as várias outras habitantes em seu passado-presente interior mistura novas-velhas imagens (pinturas e fragmentos da própria imaginação exteriorizada em versos), leitura de trechos selecionados do livro e, claro, as canções que embalaram o forjar deste grito. A récita do poema "Rotatária" (Ana Carolina, 2016), inundado na voz de Maria Bethânia, alerta para roda a girar do último retorno em busca de algo sobre ela. O espaço agora aberto é excessivo ou muito estreito; quem olha, e deseja fazê-lo, não volta tão cedo. Não voltará. Você acabará por desconhecê-la de vez, ou surpreender-se com tudo que ainda pode ser. E é. A inédita "Outras paisagens" (Ana Carolina e Edu Krieger) sinaliza a mudança das paisagens de si e a despedida do velho, ou do amor nunca morto pela passagem do tempo, passos distanciados, perdas e silêncios vociferantes. São todos estágios avançados de um pensamento entrecortado, aflição ou fraqueza. "Eu e eu" (Ana Carolina, 2016) é o outro, ou outra, deste dentro de Ana abruptamente lançado para fora da dor da mulher finalmente apaixonada pelo que se tornou, e é, antes de qualquer homem.

Dentro desta mulher há um anjo sufocado de amor e sangrado à espora. É seu lado de dentro, ou o meu de fora. Mesmo revelando-se, Ana ainda adverte em "Dentro de mim mora um anjo" (Sueli Costa e Cacaso) que nada lhe saberemos, porque seu canto diz nada. As marés deste mar são altas e suas margens, de risco. Entre personas googleizadas "No meu, seu abismo" e outros cinismos, "Qual é?" (Ana Carolina) é para quem sabe rodar a vida e seu papel nela entre traumas, enganos e lembranças que a memória seleciona e não para para esquecer. Apesar da babaquice de preconceitos e fascismos aparentemente nunca atrasáveis, Ana é (sua) mulher, homem e mito em uma só persona, e a quem não gostar, ou já não gosta por machismo/lesbobifobia escancarados, é tchau, adeus e até nunca mais, inclusive para o pedregulho de um vice decorativo misógino tornado pedra de caminho, mas jamais presidente legítimo, da pedra-pau Brasil maior - para quem fingiu não entender o hipertexto com o clássico do conterrâneo Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), "No meio do caminho" (1928).

"Além do paraíso" (Antonio Villeroy) é aquela autocomiseração tipicamente masculina, ou masculinista, mas uma vez entoada por Ana, aponta o recomeço do alguém-mulher que já sabe a medida necessária de si quando encontrar outro alguém-de-qual-gênero-for: a do amor igual. Do contrário, a saída é uma, ela mesma. O poema "Voo" (Ana Carolina, 2016) lembra, sim, a dor de uma medida, desta e outras. Medida reduz alguém a algo, ou melhor, a nenhuma história, e esta dor, se fosse barco, "faria a travessia para o outro lado de si mesma". Cantá-la é alevantar tais e tantas memórias, todas. Ana lembra-o e, aqui, levanta voo de si. Ela se fere ao cantar. Ferir é o que se sente (por) dentro, seu livre arbítrio. Ferir é ar. Ela precisa cantar. E canta. E fere. E sangra. E queima. "Preciso cantar" (Arthur Nogueira e Dand M) é o que se acredita. Ana faz-se sua ao lutar com os próprios traços, mas a mão calejada só afagava o choro pelos sonhos jamais realizados, erros silenciosos, arrependimentos, vislumbres e sentires deixados para trás, alegria às vezes demasiada, excessos, faltas e uma tristeza companheira sem fim. "Firenze" (Ana Carolina, 2016) é este choro de Ana por ser tão só, mesmo rodeada de gente. Hora de ir embora. É chegada a hora de descobrir o tempo que refaz os sonhos e desejos desfeitos, colocando no corpo "Todo sentimento" (Chico Buarque e Cristóvão Bastos) outra vez, devagar e urgentemente.

Tudo isto, entretanto, pode não ser o que queriam de Ana. Nem mesmo ela consegue saber. Ela não gosta de todos os tipos de música, não é poeta, ou marginal, ou poeta marginal, imita ninguém e é de Virgem. 09/09. Duplo nove. Não há versões francesas de músicas suas; poemas de José Luís Peixoto nunca lhe foram dedicados. Ela pede que "Não [a] leiam" (Ana Carolina, 2016 - poema recitado por Lázaro Ramos em vídeo), ou leiam; afinal, nunca sabem o que querem de verdade. "Vai que dá certo" (Emerson Leal). O tom soturno do contrabaixo dá a medida exata deste aceite, porque vai que ela dá jeito inclusive em seus defeitos? A própria Ana não faz fé nessa sua loucura, não, mas sabe que não merece um "Beijo partido" (Toninho Horta) de quem lhe arruína em pedaços. É melhor ficar longe. Hoje é mais um dia perdido no tempo. Não se fala mais nisso. Ou fala? Quanto mais a mulher segue zonza pelas ruas, a menina-sempre-perdida-em-si a persegue. "Andaime" (Ana Carolina, 2016) lembra a presença da mulher-menina ainda assombrada pelo fantasma de sua história, quando não convidada a saltar desta estrutura como que para esperar por algo ou alguém. As palavras da mulher saltam, e se lhe tremulam como um lenço entregue ao vento. Arremessar-se de si em direção ao nada às vezes cansa. A vontade é de sumir para este amarelo da alma desaparecer. Ana sentencia que se lhe der na telha manda tudo praquele lugar e foge com alguém para "Shangrilá" (Rita Lee e Roberto de Carvalho), deixando-se levar apenas por um beijo eterno da pessoa amada e, claro, seu corpo-abraço-carinho envolvente. O poema "Pra ela" (Ana Carolina, 2016), complementar à canção, é a temperatura do braço, ou deste abraço, que envolve corpo e alma enamorados. Depois das pequenas descobertas do início, a solução é ficar abraçada com ela pra sempre. "Por você" (Roberto Frejat, Maurício Barros e Mauro Santa Cecília) é desejá-la todo dia, amando-a e protegendo-a, enfim, no amor.

Amor é pele. "A pele" (Ana Carolina), poesia musicada como rap, é o rastro de corpo, medo profundo e superfície que muda e presencia sua própria transmutação insaciável. Pele é testemunha, mão a empurrar a espada do mundo sempre em punho. A dor do caminho é calo que vale a pele, porque seu poro é o choro derramado no rosto quando deste cruzar. A dor da travessia cumpre desgraçadamente a promessa de todos os sentimentos caberem e doerem como não devem no terreno vazio do coração. "A selva" (Ana Carolina, 2016 - trecho selecionado do texto em prosa falado pela mineira em cena) é o abrigo onde tudo recua, inclusive a sede de beber um a um os sonhos não realizados, mas sempre vividos. A selva afoga a Ana mulher no fim de cada caminho, e só se cala ao tragá-la de vez. Na água escura dos córregos dessa selva, nada é loucura, ou cinza. Ninguém espera ninguém. Afogar-se é o desejo de quem, já solitária de tudo, e todos, quer mergulhar no fundo do mar e ver o homem tocar um "Velho piano" (Ana Carolina, 2016), poema cancionado em que seu clipe projetado impressiona, e perturba, pelo realismo.

Como no livro, a mulher abre espaço à menina cujo principal destinatário sempre fora ela mesma, e cantarola "Se essa rua fosse minha" (cantiga popular de domínio público) para calar com o sono o choro de seu coração solitário. Este choro d'alma, em verdade, vem é chamar o anjo por quem sempre esperou na tentativa de preencher as próprias ausências. Ele a teve nas mãos quando recém-nascida, mas não a viu crescer. Esta criança era culpa, prova irrefutável de uma traição. "O silêncio" (Ana Carolina, 2016), poema recitado por Camila Morgado em vídeo, conta a história da menina desde sempre tornada mulher pelo silêncio próprio de adultos e existência inicial devotada a forjar uma outra insistentemente ausente. Aos 24 anos, a menina ganhou uma irmã que, ao amá-la, protege-a com uma parte do pai morto. A menina, hoje mulher, protege sua amiga-irmã com a parte do pai que há em si. Enquanto existirem, ele também existirá, e sua presença já não será mais apenas saudade. Esta maneira de amar vale a pena. Vale a pena amar. "Paula e Bebeto" (Caetano Veloso e Milton Nascimento) reafirma a importância de dizer a palavra (de amor) não dita, pois dizer é amizade, e amizade é amor. Dizê-la é ato de amor. Vale cantá-lo. Maneira bonita de amar é a que vale a pena, mesmo havendo quem diga que não vale a pena acreditar neste e em todos os sonhos. "Mais uma vez" (Flávio Venturini e Renato Russo) é o sol de uma nova manhã. Essa gente que machuca os outros não sabe amar, porque nunca recebeu amor. Confie. Seu caminho é de ninguém. Se não entendem, não a/o verão. Se não veem, não podem entender. Não há erro ou acerto, mas se fosse possível ver o passado inteiro até aqui e eventuais "Primeiros erros (Chove)" (Kiko Zambianchi), talvez parasse de chover nesta mente (de Ana) cansada por sempre ter de provar o quê e quem se é. Para estes indecisos, uma sonata de cellos e tambores rufando em plenos ouvidos; diapasão para afinar a discussão, som de silêncio e um baixo fretles - ô gente destemperada! -. Haja "SOM/Ruído branco" (Ana Carolina, 2016) tocando junto(s) para clarificar as impressões ou nublá-las inteiramente de vez.

"Ruído branco" é o que Ana Carolina é, ou sempre foi. Pela primeira vez, pude vê-la inteira, atravessada de si, toda sua história, corpo, gritos, dores, seu passado, ruído e silêncio. A menina-mulher completou a travessia, e fez a dor do silenciamento forçado enfim cicatrizar. Ou ferir de novo a pele, mas já sem o medo do sangue jorrado e deste queimar. Eu só a vi, porque ela também se viu. Cruzar tais olhares atravessados de mundo e neles vislumbrar nossos mares agitados de dentro valem a pele. A caminhadura outrora repleta de desencontros, raiva, mágoas e desejo de partidas definitivas a um triz valeram a pena. Ainda valerão novo-longevo caminho, agora de mãos dadas. Um ruído branco pra ti, Ana. Um ruído branco pra todo mundo.


Foto: Marcos Ferreira

2 comentários:

  1. Apreciação densa, complexa, rica de significado e de sentidos, prosa-poesia sobre um show de ana carolina, personagem/pessoa "persona-menina-mulher que jamais se viu". Texto para ler e reler porque "vale a pena o que vale a pele".

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    1. Abraço, agradeço e ruído este diálogo, Margarida! Sejamos pele. Atravessemos de pele o viver, ser e sentir. Vale a pena. Grande beijo.

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