O início deste passeio para lá de movimentado começa com um recado incisivo: chegue ao mundo sem nada. Um sorriso no rosto é a arma escolhida para vencer a boa batalha da caminhadura. A vida é esse picadeiro da corda bamba inevitável de se andar e fraquejar, mas o lance é tirar onda para a onda não afogar. "Tiro onda (Pra onda não me tirar)" (Jair Oliveira) é a síntese do clima descontraído, mas não menos permeado de seriedade aleventado pela showgirl no decorrer da viagem iniciada. A sequência com "Brasil pandeiro" (Assis Valente) celebra a ancestralidade intermitentemente negada deste país negro no qual a gente bronzeada, ou melhor, silenciada é chamada a mostrar seu valor ante a pretensão branca irritante de querer reger a batucada de um lugar que não lhe pertence. Com "Palco" (Gilberto Gil), Késia celebra os irmãos de música (Gabriel de Aquino, na guitarra; Filipe Moreno, no baixo; Lucas Parada, na bateria) e demais interlocutores que lhe sabem dar valor e prezam o fogo eterno a alimentar sua alma, arte e canto, aqui ou em Luanda. "Só quem é clarividente pode ver" uma aura clara cantar tamanho cantar.
Na "Ladeira da preguiça" (Gilberto Gil) evocada por Késia, a gente conta estrelas e celebra a maravilha de um mundo permeado de chatices e ódio, sim, mas ainda assim envolto de cantigas e, claro, daquela "Bananeira" (João Donato e Gilberto Gil) do fundo do quintal, quintal do olhar do coração. Esqueça o "Coqueiro verde" (Erasmo Carlos e Roberto Carlos) do pessoalzinho impacientado, geralmente homem, que não pode esperar para ter seus caprichos atendidos. Nem deixe chegar. Não precisa. Ele, eles sabe(m) o caminho de volta. Ou ida definitiva. Graças.
Afinal, "É isso aí (Isso é problema del[e/es])" (Sidney Miller)! 'Cê prepara roda de samba, entrega palpite seguro e separa o pedaço de bolo só pra ele, e o danado faz o quê? Não quer sambar! Pare de andar por aí curtindo o que não é, porque o problema é dele. Aliás, é com ele. Não viva mais calada, não, mulher. Fale! Tem que ser agora! Diga "Não vou ficar (Tim Maia), não". Não!, vivifica Késia. Amor assim não tem mais condição. Não faz sentido. "Me dê motivo" (Michael Sullivan e Paulo Massadas) pra ir embora. Vá à luta. Não vale a pena sofrer em vão. Nenhum homem vale as "Lágrimas de amor" (Edu Krieger) de uma mulher, asserta. Amar sem receber é sofrimento, e ninguém neste mundo merece sofrer por quem nada ou muito pouco tem a oferecer, ou duvida do todo já feito, dito, abraçado, sonhado e amado. "Esqueça" (Mark Anthony. Versão em português: Roberto Corte Real). Não chore mais, meu bem. Se lhe faz sofrer e até chorar, não é ele, ou ela. Não é a pessoa, se existe uma. É aí que Késia vem como em um abraço e garante: o amor vai ouvir tua voz, e o tempo voltar a sorrir para outro eleito ou eleita. Amor é colorir de alma, e ela terá cor outra vez. A linda "Isso é amar" (Késia Estácio) traz céu e mar juntos outra vez para um novo dizer. E sentir.
"Ainda bem" (Marisa Monte e Arnaldo Antunes). Para um coração calejado e acostumado à solidão, ter alguém ao lado é transformar-se de novo em riso, canto e amor sem idolatrias. "Gatas extraordinárias" (Caetano Veloso) lembra o batidão do coração na pista escura à procura deste amor. Plano bom ou ruim, evoluído ou involuído, o sonho influi e ele diz que só o amor pega. A paz está dentro de si mesma/o, é só procurar. Há séculos os homens, ou meninos nunca crescidos, guerreiam e para quê? Muita gente se esqueceu. Precisamos ser ensinados de novo sobre amar. Alguém precisa escutar. "Todos estão surdos" (Roberto Carlos). Daqui a pouco, aquela "Primavera" (Tim Maia) de céu límpido há de chegar. Tem de chegar. Vai, chuva!
Já encerrando a noite, Késia relembra que "Quando falo de amor" (Arlindo Cruz), é pra valer. O tempo passa e a mente não quer esquecer. Não pode. Amor não chega ao fim. Ninguém morre dele. Amor faz viver. "Quem ama prova da vida o mais doce mel". Esse amor abre a porta e não pede licença. Arrebata. Está em cada gesto, no ar, no olhar. É um "Simples desejo" (Daniel Carlomagno e Jair Oliveira). O dia vai terminar bem. E terminou ao som desta voz inundante de grito d'alma - e liberdade - que é a de Késia. Como sentenciou Dona Ivone Lara, negro é uma cor de respeito. Mulher negra é luta, inspiração, dor e solidão. E silêncio. E outra vez grito. Késia, mulher, negra, é grito, é dor, é liberdade, é amor. Seu canto é "Movimento". Gente de alma e canto em movimento é sossego. Não há como não sossegar do luto, do caminho e da vida ao som ou profundo silêncio deste cantar. Isso é liberdade. Liberdade é mulher, e a verdadeira liberdade é a desta mulher negra.
Foto: Lupa Comunicação
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